A cultura do narcotráfico brasileiro e sua evolução

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O Complexo da Penha era dominado pelos traficantes de drogas até ser pacificado pelas Forças Armadas brasileiras durante os anos de 2010 e 2012. Foto: EB

Por Fernando Montenegro*

Quando atuei como comandante da Força-Tarefa Sampaio na ocupação e pacificação dos complexos de favelas do Alemão e da Penha em 2011, no Rio de janeiro, pude notar que que desde a mais tenra idade, vários jovens são recrutados e iniciam sua participação “profissional” escalando os diversos degraus da hierarquia da organização criminosa. A convivência com as regras institucionais e a participação ativa nas atividades criminosas levam os “recrutas” a ter participação ativa nos resultados da organização e a terem a percepção de fazerem parte de “algo maior”. O recebimento e transmissão dos códigos e do modus operandi garante a continuidade do processo. Com o passar do tempo, a ascensão dos mais novos ocorre e eles passam a conduzir as adaptações da instituição à sociedade, promovendo a evolução e modificando a cultura organizacional.

A cultura de uma facção criminosa é o conjunto dos costumes, seu estilo de vida desenvolvido desde a criação da organização. Nesse contexto inserem-se: os bailes funk (tocando músicas de apologia ao crime organizado e ao sexo explícito, com a promoção de danças eróticas, consumo de álcool e drogas), justiçamentos de desafetos ou rivais, modo de vestir com pulseiras e correntes do ouro, roupas de grife, linguajar peculiar, código de leis, criação estética com cortes de cabelo específicos, tatuagens com simbologia específica e uso de armas como ostentação de status social.

A cultura desenvolvida por uma facção criminosa organizada leva os meliantes a um provimento de recursos econômicos pela comercialização de armas e drogas, garantindo a alimentação, sobrevivência, manutenção e melhoria das condições de conforto das moradias e manutenção da vida. Eles encaram isso como um “trabalho sério”.

Como inimigos da quadrilha, pode-se identificar inicialmente outras facções criminosas rivais, além das milícias, e, finalmente, dos Órgãos de Segurança Pública (OSP). Motivando os integrantes a construir artefatos explosivos de fabricação caseira, barreiras para veículos policiais, muros de contenção (para se abrigar de projeteis), instalação de um complexo sistema de vigilância, segurança aproximada dos líderes e das fontes de recursos financeiros, elaboração de rotas de fuga, compra de informantes e aquisição de armas e munição de alto calibre. O funcionamento integrado desses sistemas ocorre em paralelo com a vigência do código de regras da facção.

A evolução cultural ocorre na interação com a própria sociedade. Muitas vezes as modificações e adaptações são realizadas por imitação das próprias instituições que ameaçam a sobrevivência da facção. Por conta disso, as novas tecnologias passam a ser incorporadas ao funcionamento da organização:

-Com a chegada dos telefones celulares, o sistema de vigilância foi aperfeiçoado e foram viabilizadas articulações a longa distância, envio de mensagens de texto, de imagens e até mesmo chamadas internacionais, proporcionando grande flexibilidade aos líderes;

-Os smartphones, com seus aplicativos, viabilizam envio de imagens, e-mails, mensagens e conversas pela internet em tempo real com qualquer lugar do planeta (Skype, WhatsApp, Messenger, IMO, dentre outros);

-O uso dos rádios tipo “talk-about” barateou o sistema de vigilância que passou a ser mais ágil e incrementado com o uso de mensagens pré- estabelecidas ou palavras cifradas.

-A internet, por intermédio das redes sociais, passou a ser amplamente usada na promoção comercial das atividades, nas provocações aos OSP e facções rivais com fotos e vídeos depreciativos editados especificamente com essa finalidade ou mesmo como elemento dissuasor. Essas atividades costumam ocorrer em tempo real.

O integrante do crime organizado e sua organização interagem e são intensamente influenciados pelas transformações ocorridas na sociedade ocidental nos diferentes períodos.

Pode-se observar que as facções criminosas sofrem as influências da época em que estão inseridas, entretanto, constata-se que não é possível considerar que a sociedade do crime organizado esteja 100% na coluna pós-industrial.

A organização familiar muitas vezes é patriarcal-tribal, não sendo raros os casos de poligamia pelos os líderes das facções. Nesse contexto, existem verdadeiras disputas entre as mulheres pela condição de ser a preferida, ou a “mulher de fé”, conforme o linguajar pessoal.

É mais normal encontrar criminosos ligados ao sincretismo religioso. Misturam cartomantes, adivinhos e santos católicos com o candomblé. A “ética” religiosa possui peculiaridades e normalmente é subordinada aos códigos e regras da organização. É muito comum apelação para trabalhos e despachos ligados ao candomblé, embora se use tatuagens e pingentes cristãos.

No tocante aos valores, a predominância é do prazer sexual, do consumo, do prestígio e da sensação de poder. A auto-realização ocorre na percepção de ver a “firma”(facção) funcionar bem.

Tendo em consideração a natureza, os integrantes das facções criminosas normalmente ignoram a ecologia. O foco fica na produção de matéria prima (drogas) para comercialização e lucro.

A relação com o corpo e sexo tende à terceira coluna da tabela, com apologia ao hedonismo e genitalidade, evidenciada pelas músicas e danças eróticas dos bailes funk e festas no interior das comunidades.

A cultura mescla características de épocas distintas. Se por um lado é tradicional, enraizada e machista nas cobranças, muitas vezes apresenta um lado consumista.

A arte também é um ponto de interseção entre as épocas. Existe a produção de músicas e de vídeos de apologia ao crime em estúdios clandestinos e rudimentares. Nesse processo também são usados computadores; paralelamente, usa-se grafite nos muros e paredes em desenhos que promovem a facção e o líder local.

O lugar geográfico mais importante do território controlado está ligado diretamente à sobrevivência, assim sendo, a organização é extremamente territorialista e privilegia a propriedade, as armas e as mercadorias (drogas). O setor da atividade dominante mescla a “burguesia” na aquisição e revenda das drogas e os serviços de “segurança” para garantia da sobrevivência.

No tocante à ocupação, existe bastante trabalho braçal das pessoas que levam e trazem a droga, daqueles que fazem a indolação (embalam a droga para vender) e os serviços de segurança do sistema (armados e vigias), além dos produtores de vídeos e músicas de apologia ao crime.

A tecnologia usada permeia as diferentes fases. Na preparação da droga é usado processo rudimentar, bem como na indolação (embalamento). Por outro lado, com os recursos econômicos, os criminosos adquirem armas sofisticadas, smartphones e computadores.

A mentalidade predominante fica na coluna da era pós-industrial, evidenciando o lado hedonista e consumista. No tocante à filosofia, predominam o irracionalismo e o niilismo, ou seja, ausência de questionamento das ações associado à depreciação dos valores tradicionais.

Entretanto, embora alguns ambientes possam favorecer a sedução das pessoas para o crime, sempre haverá o livre-arbítrio na decisão final do caminho a escolher.

*Fernando Montenegro – Coronel R/1 Forças Especiais do Exército Brasileiro – Foi comandante da Força-Tarefa Sampaio na ocupação e pacificação dos complexos do Alemão e da Penha em 2011.

FONTE: Diálogo Américas

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