“LIBERATORI” – Heróis brasileiros na 2º Guerra Mundial

Brasileiros Recepcionados com festa
Brasileiros Recepcionados com festa Foto: MNMSGM

Com relatos de italianos que conviveram com os Pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, o autor leva aos leitores como os heróis brasileiros da 2ª Guerra Mundial, em decorrência de uma convivência fraterna com os cidadãos italianos e pela capacidade de se adaptarem às difíceis condições do combate e destemor para enfrentar um inimigo forte e aguerrido, conquistaram o título de Liberatori.

Em todas as guerras, a população indefesa é quem mais sofre. Destruição, miséria em todos os sentidos, fome, humilhações e confisco de bens são algumas das provações a que é submetida. Entre 16 de julho de 1944 (chegada do 1º escalão brasileiro a Nápoles) a 19 de setembro de 1945 (embarque do último escalão para o Brasil) 25.354 brasileiros participaram da 2ª Guerra Mundial, na Itália. Entre os veteranos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) é comum ouvir sobre o convívio fraterno com a população. Nesse contato, aprenderam e agregaram muitas palavras italianas ao seu linguajar. Uma das mais significativas é Liberatori – Libertadores, na tradução literal.

A partir de 20 de setembro de 2012, no cenário dos combates, foi possível confirmar o quanto foi difícil a missão da FEB. O terreno acidentado evidencia dificuldades; se acrescentarmos a ele adversários adestrados e condições climáticas desfavoráveis, não restam dúvidas sobre as barreiras vencidas pelos pracinhas ao longo dos cerca de 400 quilômetros percorridos e centenas de vilas e cidades libertadas. Havia um adversário a combater, que exigia preparo e atenção impecáveis; havia a população a proteger, que merecia cuidado especial. Em ambos os quesitos, os brasileiros saíram-se muito bem. Vários italianos relataram comoventes histórias que evidenciam porque, transcorridas quase sete décadas, os brasileiros são reverenciados como heróis e esclarecem porque se tornaram merecedores do título de libertadores, objetivo maior deste artigo.

O SOLDADO CIDADÃO

Na guerra, o medo é companhia constante dos soldados e da população. Enquanto avançavam no terreno, os brasileiros se hospedavam em casas italianas, propiciando uma relação benéfica para todos: para os italianos representava comida, segurança e solidariedade; para os brasileiros, conforto no rigor do inverno e o aconchego substituto da família distante. Para as crianças, o medo se multiplicava e se transformava em pavor, inflado pela propaganda; por isso, recebiam maior atenção. O tempo passou; contudo, não se esquecem da mão que as confortou na dificuldade. Perdas e eventuais ganhos permanecem vivos na memória e são externados em depoimentos emocionados, que comprovam que os sentimentos forjados no calor da guerra, mesmo em terras geladas, são para a vida inteira.

A neve – Mais um obstáculo a ser vencido – FOTO: AHEx

Giuseppina Malfatti expressa o horror da guerra, mas deixa transparecer o carinho e a atenção recebidos quando criança. “Durante a Guerra, eu era muito pequena, mas tenho recordações muito vivas, muito fortes. Nós vivemos todo o terrível período de 1943/44 ao longo daquela que se chamava Linha Gótica. Vimos queimar Sant’Anna di Stazzema (aldeia em que foram cruelmente mortas mais de 500 pessoas, entre crianças, idosos e refugiados, em agosto de 1944, pelos nazifascistas); tivemos parentes – a minha avó paterna… – mortos pelos alemães. Guardo a lembrança das nossas fugas nos bosques, perseguidos pela SS com cani lupo (pastor alemão). Por anos, eu não pude suportar os cães…”.

Seu encontro com os brasileiros deu-se em um dia chuvoso de setembro de 1944, quando eles chegaram à casa de sua avó e pediram hospedagem. “Naquele momento, começou a nossa ressurreição.” […] “Nós, crianças, éramos cinco: três irmãos e dois primos; aproximamo-nos com muita curiosidade desses soldados, que nos deram pães com geleia. Eu acredito que aquilo tenha sido para nós ‘o’ presente. Ou seja, há anos não comíamos coisas doces.” […] “Era uma geleia de cereja escura, que nunca vou esquecer. Davam-nos algumas caixinhas; talvez carne com verduras, com ervilhas. Ocasionalmente, essas caixinhas nos eram presenteadas e nós apreciávamos muitíssimo porque a fome era tanta.” […] “As sensações das crianças são completamente distintas das dos adultos. A libertação, a liberdade, e, finalmente, o fim do medo correspondiam ao fato que de podíamos comer doces novamente…”.

Superada a desconfiança, prevaleceram a amizade e a integração

Durante o longo convívio, o medo dos brasileiros – sobretudo dos negros, com os quais ainda não tinha convivido –, que havia sido fomentado pela propaganda fascista, transformou-se em confiança: “Porém me lembro, devo dizer… eram muito bons, mais que todos; e mais benevolentes. Uma prima, recordo que brincava (com eles), porque nós tínhamos dois tios prisioneiros – um na Rússia e outro na Alemanha –; portanto, dois primos não tinham os pais em casa.” […] “E estes rapazes, acredito, eram jovens, mas eram muito afetuosos com nós, crianças, e em particular com os priminhos que não tinham os pais em casa”. Em parte, Giuseppina atribui a atenção e o destemor dos pracinhas à religiosidade: “Minha avó era uma pessoa muito altruísta, muito generosa, e perguntava a esses rapazes se eles não tinham medo; e eles diziam: Não, porque tenho fé no coração! ’”.

Giancarlo Maciantelli, que encontrou os brasileiros em Granaglione, confirma: “A propaganda fascista tinha colocado em nossa cabeça algumas teorias… e tinha as tropas de cor, que foram marcadas, definidas… Disseram que eram selvagens. Bem… essencialmente, disseram que comiam crianças, para podermos entender. E, portanto, no primeiro contato com essas tropas de cor, brasileiras, houve um pouco de desconfiança: as mulheres se trancavam em casa; nós, crianças, procurávamos permanecer longe. Depois, notamos que eram soldados de bom coração, tranquilos, cordiais, que procuravam as crianças para dar carinho, para dar chocolates…”.

Maciantelli reforça a integração entre os italianos e os brasileiros que, ao invés de dormirem nas trincheiras geladas, ficavam nas casas: “Ali nos contavam um pouco de suas famílias no Brasil, da saudade, que era muita. Uma vez estabelecida a confiança, se desencadeava toda aquela alegria brasileira, que podia aparecer de uma caixa de fósforos… tum, tum, tum, tum, tum, tum… a bater em panelas de alumínio, de lata, com bastões, para fazer um pouco de ritmo. Era uma diversão, um passatempo. Ao sentirmos esta cordialidade, a gente se ligava mais e mais a esses soldados. Não existia mais o medo… dos negros que comiam crianças, como nos diziam os jornais fascistas”.

Valentino Betti tinha 10 anos na época da guerra. Morava a dois quilômetros de Gaggio Montano, numa pequena aldeia onde se localizava a cozinha dos brasileiros. Recorda que alguns se destacavam pela atenção que davam às crianças: “Tinham bom coração… Eu penso neles todos os dias… Éramos fascinados e estávamos sempre com eles”.

Após muitas histórias e longo convívio, restou o sentimento de perda ao fim da guerra: “Nós ficamos esperando que chegasse alguma correspondência, mas nunca chegou nada. Nós nos tornamos verdadeiramente amigos, e eles foram embora…”.

Iolanda Marata conviveu com os brasileiros em Preccaria por longo período. Sua mãe preparava a comida para os soldados e todos comiam juntos, em harmonia. Recorda que seu pai havia enterrado algumas caixas com grãos e outras com garrafas de vinho, que desenterrava e bebiam juntos. “Sempre foram bons, respeitosos; seja com a família, seja comigo, que era uma garotinha. Chocolate… quanto chocolate eu comi!” O convívio era familiar e incluía assistência médica para quem necessitasse. Com alegria e gratidão conclui: “Sempre foram bons e gentis com todos… Não devemos nunca nos lamentar”.

Os irmãos Vittorio e Bianca Bernardi perderam o pai, assassinado pelos alemães em 1944. Sem contar com o apoio dos familiares, abandonaram a cidade com a mãe e outros moradores, indo buscar refúgio em Porreta Terme. No grupo havia cerca de dez crianças. Na primeira manhã, foram à praça e, para sua admiração” – relata Vittorio –, “os brasileiros deram de comer às crianças antes de servirem a eles mesmos. Os brasileiros, em suma, sempre nos consideraram, nos deram de comer, deram cobertores; sempre nos trataram bem, bem, bem… Digo bem não porque vocês são brasileiros, mas porque era assim… Davam-nos sempre formas de pão; aquele pão branco, macio…”.

Bianca afirma que, além da comida que recebiam no entorno do acampamento e da que o irmão levava para casa, à noite alguns soldados levavam um pouco de pão, potes de queijo fundido, chocolates, frutas em potes, além de algumas peças de vestuário e calçados. Por esses motivos se emociona a cada vez que vê um brasileiro. Traz viva a lembrança do afeto, do acalanto: “… aqueles militares me pegavam nos braços e diziam: ‘venha aqui comigo, pois amanhã à noite te trago chocolate… Agora vem aqui cantar comigo’. Eu não esquecerei nunca… Mesmo porque, sabe, a falta do meu pai pesava… e encontrar alguém que me pegasse nos braços era uma grande coisa…”. “E foi assim. Eles nos trataram bem… como senhores. Nós podemos dizer – eu tenho setenta e três anos e espero que acreditem em mim – que fomos tratados melhor pelos brasileiros e pelos americanos do que pelos nossos parentes… com isto eu disse tudo”, conclui.

Médico brasileiro assiste à criança italiana Foto: AHEx

Desafiada pelo marido Giancarlo, Bianca pede a ajuda do irmão. Juntos, cantam: “Quem parte leva saudade de alguém, que fica chorando de dor, por isso não quero lembrar quando partiu meu grande amor… Ai, ai, ai, ai… está chegando a hora; o dia já vem raiando meu bem; eu tenho de ir embora…”. A emoção cala suas vozes. Bianca complementa: “A música nos faz lembrar deles. Eles nos ensinaram… vinham a nossa casa à noite e diziam: ‘Agora vamos cantar para ter um pouco de alegria’. E pensem! Eu tinha cinco anos, não mais do que isso”.

Vittorio: “Não lembro bem do nome; lembro daquele da cozinha, daquele negro que se chamava Quim. Certas coisas não se pode esquecer. Quando nos jogavam uma forma de pão branco, que nós comíamos como açúcar, como doces… Rapazes, Acreditem em mim! Precisariam passar por isso para saber…”.

Giuliana Menichini diz que a vida na guerra é como uma medalha; tem sempre dois lados: “não é tudo negativo e nem tudo é positivo; porém, naquele período prevaleceu o medo, o sofrimento”. A primeira impressão que teve dos brasileiros foi muito boa, sobretudo de retomada da liberdade. Giuliana compara outros soldados aos brasileiros: “A diferença é que os brasileiros não davam… eles dividiam! Se tinham café, levavam café em casa… se tinham chocolate, levavam chocolate em casa… o mingau, o pão branco. Era uma divisão, o que era muito diferente. Era como confraternizar com os brasileiros; eles se integraram logo à família; acredito que a origem latina ajudou. Era uma convivência muito boa; familiar”.

Fabio Gualandi nasceu em 1935, em Gaggio Montano. O seu depoimento expressa a crueza da guerra e, em contrapartida, a solidariedade. “Durante o passar da guerra aconteceram coisas muito, muito… terríveis! Matanças… a vida não valia nada… Era um número… se pensava em um número e pronto: sobraram dez, sobraram oito…”. […] “O soldado brasileiro chegou aqui em primeiro de novembro. E chegou não como um exército de conquista. Compreendeu rapidamente a situação dos habitantes que, depois de tanto tempo, festejavam a libertação…”.

Gualandi diz que a população, tendo em casa os soldados, se sentia segura, protegida. Foram cinco meses de convívio a um quilômetro da Linha Gótica. “E realmente todos, nesta região, se lembram dos soldados brasileiros com afeto e com bondade. De um dia para o outro, de viver com medo, de viver com pouca comida… quando eles chegaram, chegou a comida, chegou o chocolate, chegou tudo! E se tornaram, o soldado, a população e a comunidade verdadeiramente amigos”. “Os brasileiros nos deram um pouco do bem da vida, de viver”. “Por isso”, diz, “quando os Pracinhas chegam à Itália são acolhidos por todos; é a forma de externarem a gratidão. Os Pracinhas merecem! Foram, naquela época, verdadeiros amigos… Só com a vinda dos brasileiros é que começamos a viver e a reviver, amar a vida, ter amigos, todas aquelas belas coisas…”, conclui Gualandi.

OS GUERREIROS

Ao chegarem à Itália, os soldados brasileiros tiveram de se adaptar rapidamente ao clima adverso e ao terreno acidentado. Além disso, o armamento e o fardamento eram desconhecidos. A despeito das condições desfavoráveis, mesmo sem o preparo adequado, assumiram a missão. Italianos da resistência, que participaram da guerra ao lado dos brasileiros, admiram-nos pelo denodo com que encaravam o inverno gelado e o inimigo mais bem preparado e ambientado àquele cenário.

Lares italianos eram refúgio acolhedor no rigor do inverno Foto: AHEx

Para Giancarlo Maciantelli, os brasileiros eram admiráveis. “Esses soldados diziam: ‘nós saímos de 40 graus do Rio de Janeiro…’ Eu sei! E, quando chegaram aos Apeninos, eram -15 graus… Depois, naquele ano, veio abaixo uma avalanche de neve… nem todos tinham visto neve, tido experiência de frio… E isso trouxe o congelamento de pés, congelamento de mãos, resfriados, bronquites, todas as doenças… Quando chegavam até nós, nas nossas casas de montanha; não tinha sistema de aquecimento, tinha a lareira… Todos ‘grudados’ ao fogo para esquentarem. Faziam patrulhas e vinham se esquentar nas nossas pobres casas de camponeses da montanha”.

Moreno Costa tinha 18 anos quando teve contato com os brasileiros, em Camaiore, em 18 de setembro. Para ele, os brasileiros são admirados, sobretudo pelos mais idosos, não só pelo senso humanitário na relação com a população sofrida, mas também pela seriedade que demonstravam nas ações em que tiveram participação. Mesmo que os alemães já houvessem abandonado Camaiore quando a FEB chegou, Costa ressalta a importância dos brasileiros pela segurança que proporcionaram: “Foram eles que ocuparam e protegeram as instituições, como a prefeitura e outros prédios públicos”. Acrescenta que os brasileiros estiveram em várias cidades da Alta Versiglia, para as quais a população só retornou após a chegada dos Pracinhas. Inquirido por que os brasileiros são considerados libertadores, Costa é enfático:

“Bem, não é que são considerados ou os consideramos libertadores… eles são libertadores”.

Franco Fini estudava Medicina e Cirurgia na Universidade de Bolonha. Durante a guerra, permaneceu junto à família em Santa Maria Villiana. Recorda que, no dia 1º de novembro de 1944, chegou a 7ª Companhia do 6º Regimento, lá permanecendo até o fim do inverno. “Na noite de 4 de fevereiro de 1945 vieram os soldados da SS para atacarem as posições (brasileiras). De fato, eu estava aqui fora com meu pai e o Capitão Portocarrero… Começou um fogo infernal…

O Capitão pediu tiros de artilharia. Os primeiros tiros caíram dentro da nossa linha; depois ajustaram o tiro e chegaram ao ponto ideal… Foram horas de combate”. Os alemães queriam estourar a ponte de Marano, a fim de poderem atacar as tropas brasileiras que estavam para o lado de Castelnuovo pelas costas, mas, ao contrário, foram expulsos. A fazenda estava no meio dos fogos alemães e aliados; era conhecida como “terra de ninguém”, onde os embates de patrulhas eram constantes. “Aqui era o fim do mundo! Quando começavam a disparar, nós entrávamos em casa e, quando os tiros batiam de encontro à parede, a casa estremecia”, diz.

Brasileiros na frente da casa de Franco Fini – Foto: Franco Fini

Fini compara o soldado brasileiro ao de outros exércitos: “Havia uma diferença enorme; os soldados brasileiros eram como irmãos e uma boa companhia. Repito: como irmãos! Os outros exércitos eram completamente distantes, mesmo porque não nos entendíamos (por causa do idioma)”. Esclarece que, na Toscana e na Emilia Romagna, os brasileiros são conhecidos como libertadores, pois foram os primeiros a chegar: “Em toda esta região, não sei em outra parte, mas aqui no vale do Rio Reno, de Porretta até Vergato, os libertadores foram os brasileiros…”.

Francesco Berti, nascido em 1926, era integrante da Brigada Justiça e Liberdade, lutava ao lado dos aliados. Apesar dos fracassos iniciais da FEB em Monte Castello, admira a coragem dos Pracinhas e a persistência no combate.

“No começo”, diz, “os brasileiros foram alvo fácil. Ali houve muitos mortos. Eu me inclino diante desses pobres Pracinhas que não conseguiram chegar sobre a linha de fogo e foram mortos; muitos e muitos. Eu lembro que havia um pelotão de sepultamento na Estrada Provincial e todos aqueles sacos cheios…”.

Ugo Castagnoli, testemunha ocular das ações brasileiras, tinha 15 anos quando a frente de guerra aproximou-se da sua cidade. Como muitos italianos, abandonou sua casa em busca de paz, na região de Gaggio Montano. “Eu vi quando atacaram o local que se chama Serretta di Maserno e, depois, aqui em Montese, no Monte Montello. Foi uma batalha muito áspera, muito forte, com mérito dos brasileiros, que se saíram melhor. Restaram muitos mortos… Mas a bravura dos brasileiros teve o seu valor; conseguiram passar pelos obstáculos… Em suma, os alemães tinham as posições fortificadas e foi uma batalha muito dura, muito severa”.

A guerra passou e a vida voltou à rotina; porém, ficaram as marcas, indeléveis. Valentino Betti diz que o pior sentimento deixado pela guerra é a perda da infância, da ingenuidade, enfim, da juventude: “De rapaz, quando termina a guerra, a gente se torna quase um homem”. Betti diz que se encontrasse um veterano brasileiro, não saberia expressar exatamente o que sente. “Eu o abraçaria… porque, para mim, os brasileiros foram os que mais sofreram nesta guerra e, em suma, foram os que mais deram à Itália, pelo menos no nosso território”. “Eu creio que noventa por cento da população de Gaggio Montano teve um relacionamento verdadeiro com os brasileiros. (O Brasil) é a única nação que permaneceu impressa na história de Gaggio”, conclui.

HOMENAGENS

Com tantos depoimentos, não restam dúvidas de por que os Pracinhas são os libertadores da Toscana e da Emilia Romagna. Contudo, para os italianos, é uma questão de justiça tornar visível a gratidão, de modo que as futuras gerações não se esqueçam dos “heróis que vieram do Brasil para libertar uma terra que não era deles”. Imponentes ou singelas, as homenagens expressam o reconhecimento ao guerreiro que, mais do que qualquer outro, foi amigo, solidário e, sobretudo, cidadão.

Francesco Berti, proprietário da famosa Casa Guanella, que protegeu muitos Pracinhas durante o gelado inverno, doou o terreno em que está construído o monumento em homenagem aos soldados mortos e à FEB, à frente do Monte Castelo. Justifica a doação como “um ato de necessário reconhecimento pelo valor com o qual combateram os soldados brasileiros… Os brasileiros não deixaram conversa fiada sobre o terreno: eles deixaram mortos. E eu quis agradecer, valorizar esses soldados…”.

Claudio Carelli tinha quatro anos e se lembra dos detalhes pelas histórias que ouvia dos pais. Recorda que morava em Riola com os avós e os pais. “Dois brasileiros vinham sempre a nossa casa; como se tinha pouco para comer, eles traziam caixinhas de chocolates. Depois comiam com a gente; o pouco que tínhamos, dividíamos e éramos exatamente uma grande família naquele momento… Brincavam sempre comigo; portanto não posso esquecer”.

A capela, em Stafolli, durante a 2ª Guerra Foto: MNMSGM

Quando adquiriu um sítio em Vergato, pesquisou e descobriu que dois Pracinhas haviam morrido no local. Em homenagem, construiu “um pequeno memorial a dois soldados brasileiros que morreram aqui lutando pela liberdade; pela minha liberdade. Se hoje eu sou um homem livre, sinto-me grato a estas duas pessoas e quis recordá-las. E recordar quer dizer que também os meus filhos e os meus netos saibam da minha história, da história da Itália e também do Brasil”. Na placa afixada ao memorial está escrito: “Para a honra e lembrança de Francisco Gomes de Souza e José Alves de Abreu, dois valentes Pracinhas da Força Expedicionária Brasileira que aqui tombaram em batalha, no alvorecer de 1945, lutando pela liberdade”.

O historiador Giuliano Cappelli, custódio da Capela de Nossa Senhora de Lourdes, em Staffoli, quando soube da gruta construída pelos brasileiros, procurou até encontrá-la. Para ele, é fundamental preservar o local, “primeiro porque é que uma página dividida da História do Brasil e da Itália; depois, porque também é um ponto de agregação de dois povos em um mundo cheio de tensões, de guerras”. “Julgo que este lugar tenha uma importância também em nível espiritual, pois se trata de um monumento construído por pessoas que, neste momento, talvez não estejam mais vivas… Graças também à sua memória e honra é que me dedico com esta paixão à manutenção do monumento e isto me distingue. Em honra aos mortos e àqueles que combateram pela libertação e restauração da democracia no nosso país. É, sobretudo, um gesto de gratidão”, conclui.

Nem todos puderam construir monumentos ou memoriais. Entretanto, o brilho no olhar e as palavras externadas são sempre de alegria e reconhecimento, por poderem transmitir aos brasileiros o monumento à solidariedade que os Pracinhas construíram na alma e no coração dos italianos. Giuseppina Malfatti diz: “Depois da guerra eu nunca mais ouvi falar dessa Força Expedicionária Brasileira.”

“Eu me perguntava: E os brasileiros? Ah! Você deve ter sonhado com os brasileiros…” Quando soube que almejávamos o seu testemunho, cancelou a agenda para dar o seu depoimento sobre os “nobres soldados”, que “tinham chegado e sumido”, dos quais “a bondade era fabulosa”. “Quero acrescentar que estou feliz que alguém queira ouvir-me testemunhar sobre esses soldados… É uma obra de recuperação da memória.”

Monumento construído para homenagear quem viveu os horrores da guerra se destaca na hoje serena paisagem, vista de Bombiana Foto: Vera Lucia Lopes Cordeiro

Maria Elisabetta Tanari, prefeita de Gaggio Montano, julga fundamental rememorar a participação brasileira na guerra em todas as escolas, pois os episódios vividos entre os brasileiros e italianos estão impregnados de humanidade, de amizade, de troca e, por paradoxal que possa parecer, de alegria, pois serviram para humanizar uma experiência cruel e inumana como a da guerra. “Esta é uma experiência fundamental que precisa ser conservada e transmitida”, conclui.

Giuliano Tessera, professor de História e Filosofia, morador de Milão, admite que, até há alguns anos, não conhecia a participação brasileira na II Guerra Mundial. Apaixonado pelo assunto e por ouvir da população como era tratada pelos brasileiros, conclui: “Não estarei contente até que veja o tema nos livros, na normalidade do estudo, não como coisa excepcional, não como folclore, mas como coisa real e efetiva”.

Mario Pereira, filho do veterano Miguel Pereira e de Giuliana Menichini, tem a missão de hastear diariamente a Bandeira do Brasil no mais representativo símbolo da participação brasileira na guerra: o Monumento Votivo Militar Brasileiro, em Pistoia. Além disso, zela para que a chama perpétua, representativa da tenacidade do soldado brasileiro, permaneça acesa e ilumine o túmulo do “soldado desconhecido”, único corpo que permanece sepultado no local.

Pereira destaca que as visitas têm aumentado muito nos últimos anos, o que mostra o reconhecimento da população italiana pela postura adotada pelos brasileiros durante a guerra, tanto no campo de batalha, quanto na postura humanitária. Segundo diz, sua missão é seguir os passos do pai, que “não falava em trabalho; ele falava em missão. E a minha missão é manter acesa esta chama, que não é uma mera chama: é a chama da memória”.

FONTE: Revista “Verde Oliva” do EB

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