Voando sobre os mares, nas asas dos desenhos

Por Capitão de Mar e Guerra (RM1) Mauro Olivé Ferreira

Após anos sonhando em ser AVIADOR, chegava, finalmente, em setembro de 1995, a Base Aérea Naval de São Pedro da Aldeia (BAeNSPA), no Estado do Rio de Janeiro, para começar a tornar realidade este sonho. Começava para mim, o Curso de Aperfeiçoamento em Aviação para Oficiais (CAAVO), da Marinha do Brasil (MB).

Impossível descrever a mistura de sentimentos naquele momento, pois era uma sopa de ansiedade, felicidade, expectativa e tensão, tudo junto em um caldeirão de hormônios mal amadurecidos e típicos de alguém com 25 anos. Me perguntava, sem parar, se teria sucesso. Afinal, estava em jogo tudo o que sempre quis pra mim.

Mas, tão antigo quanto o meu sonho de voar (que remonta, até onde eu me lembre, a mais tenra idade), era a minha satisfação de transformar tudo que voava em desenhos. Já lá pelos idos de 1975, com 5 anos de idade, ao ver uma aeronave nos céus, corria para rabiscá-la, de forma, claro, bem infantil, nas folhas de um caderninho bem surrado. Desenhava o céu e as incríveis máquinas humanas que por lá passavam, e me encantavam, ao passar sobre a minha casa.

Setembro de 1995: Apresentação no CIAAN para iniciar o CAAVO. Começando a concretizar o sonho de garoto (segundo da esquerda para a direita).

Desta maneira, quando pisei, 20 anos depois, e pela primeira vez, no Centro de Instrução e Adestramento Aeronaval (CIAAN), dentro da BAeNSPA, para começar o CAAVO de1995, senti, claramente, que estava destinado a colocar os meus desenhos a serviço da Aviação Naval. Era o lógico a se fazer. Era o predestinado a se fazer. Trazer dos desenhos, o piloto, e trazer do piloto, os desenhos.

Além disso, desenhar para a MB já não era, exatamente, uma novidade pra mim. Desde o início em 1989, na Escola naval (EN), anos antes, passei a contribuir para a hilária e, tradicional, revista A CHALANA, a publicação de humor feita pelos próprios aspirantes. Revista, claro, chega a ser exagero. Era quase um pasquim, feito ‘a mão e com cópia feitas em mimeógrafo. Verdadeiro dinossauro se comparado aos dias de hoje, com memes em INTERNET. Mas nem por isso, menos prazeroso de fazer, tanto que, no quarto e último ano, fiz questão de ser o Encarregado da mesma. Consegui, já que ninguém mais quis…

Ainda aspirante da Escola Naval (EN), a bordo do Aviso-de-Instrução (AVIN) U-12 Guarda-Marinha Jansen, buscando sempre referências e inspiração para a revista A CHALANA

Em 1993, e, portanto, também antes de vir para a Aviação Naval, já Oficial de Marinha, a bordo do saudoso e valente contratorpedeiro (CT) D-29 PARANÁ, descobriram meu ¨talento¨ e me ¨laurearam¨ com a confecção da igualmente rudimentar revista A ESCOVADA. O título vinha estranho mascote do navio, o GATO ESCOVADOR, um gato marinheiro ágil em varrer as dificuldades e cumprir a missão. Claro, assim como no caso da A CHALANA, me diverti muito.

As rudimentares, porém, não menos prazerosas de fazer, revistas A CHALANA, da Escola Naval (EN), e A ESCOVADA, do CT D-29 PARANÁ

Chegamos, então, como disse, a setembro de 1995, para começar o CAAVO e iniciar a realização de meu sonho maior, voar. O curso era dividido em duas fases, uma teórica no CIAAN (de seis meses) e, no ano seguinte, 1996, a melhor parte (aliás, sensacional), a prática de voo, no 1º Esquadrão de Helicópteros de Instrução (EsqdHI-1), com o tenaz e eficiente helicóptero Bell IH-6B JET RANGER, responsável, desde a década de 70 e até hoje, por formar gerações e gerações de aviadores navais. Valente aeronave, que me ensinou a domar os céus, sobre a terra e sobre os mares.

Havia (e, acredito, há até hoje), a tradição da Bolacha de Macacão de Voo da turma do CAAVO, uma maneira muito descontraída e animada de personalizar e marcar a presença de cada uma das turmas de aviadores navais. Fundamental era que, além de, claro, remeter ‘a Aviação Naval, a mesma deveria retratar o ¨espírito¨ marcante de cada turma em particular. Ora, era para os meus desenhos, um prato cheio.

Bolacha da Turma CAAVO-1/1995, que tive a honra de desenhar.

Dito e feito, procurando captar o espírito descontraído e, até certo ponto, sarcástico da minha turma, apresentei a minha proposta de bolacha, retratando o cachorro MUTLEY, do antigo desenho CORRIDA MALUCA, mascote escolhido da turma. Deu certo. Ganhei o concurso interno e marquei aí meu primeiro desenho a serviço da Aviação Naval.

Já como aviador naval, embarquei no 1º Esquadrão de Helicópteros de Emprego geral (EsqdHU-1), a unidade aérea onde, me dedicando de corpo e alma e aproveitando cada minuto, viria a passar a maior parte da minha vida como piloto, voando as aeronaves que me deram mais prazer de pilotar e operar, os lendários Helibras UH-12 ESQUILO MONOTURBINA e Eurocopter UH-13 ESQUILO BITURBINA. Um Esquadrão que, desde o início dos anos 60, é pioneiro notável e casa de inúmeros insignes pilotos do passado.

Claro, com toda esta satisfação pessoal e profissional, mais foram surgindo novos desenhos, tendo como tema a Aviação Naval. Naquele momento, a Diretoria de Aeronáutica da Marinha (DAerM) , por meio do Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos da Marinha (SIPAAerM), aumentava, cada vez mais, e sempre, o esforço no sentido de implantar e difundir uma mentalidade de Segurança de Aviação nas OM envolvidas com operações aéreas na MB. E uma das maneiras para tal, foi a realização de concursos anuais de cartazes de segurança de aviação, o que, por si só, abria enorme espaço para desenhistas amadores, como eu. Claro, não perdi a oportunidade e passei a participar de todos eles.

Cartaz de Segurança de Aviação de 1999.

Um dos cartazes que fiz e que, modéstia ‘a parte, teve mais sucesso, foi o que retratava um aviador naval, vestido de macacão de voo e capacete, e que, espantado, se via como uma caveira no espelho. No cartaz, o seguinte dístico: ¨este poderá ser o seu futuro amanhã, se você não pensar em segurança hoje¨. Meio tenso, mas bem humorado e, o mais importante, chamava a atenção para a Segurança. Durante muito tempo, tive a honra de, nas missões com o UH-12 e o UH-13, encontrar cópias deste cartaz espalhado pela MB, onde houvesse operações aéreas, inclusive, anos mais tarde, no Navio de Apoio Oceanográfico (NApOc) H-44 ARY RONGEL, no qual fui à Antártica, por dois anos seguidos.

1999: desenhando a ASA da Aviação Naval no hangar do EsqdHU1.

Intensamente vivi o EsqdHU-1 e nada me emocionou mais do que ter tido a honra de desenhar, em 1999, a ASA da Aviação Naval, em tamanho gigante, no piso do hangar do EsqdHU-1. Ali, foram dias de esforço, totalmente compensados por doses gigantes de alegria por deixar, para o futuro, um desenho meu no coração de meu querido esquadrão.

Inauguração da ASA da Aviação Naval no EsqdHU-1.

Em 1999, com a recente criação do o 1º Esquadrão de Aviões de interceptação e Ataque (EsqdVF-1), fui transferido para este esquadrão para ajudar na implantação do mesmo, tendo em vista minha formação em ASA FIXA, obtida dois anos antes na Argentina. Foram 3 anos servindo no EsqdVF-1, fazendo, claro, alguns desenhos, como, por exemplo, camisas e o QUADRO PAU de SEBO, que é o quadro que contabiliza as horas de voo de cada piloto.

2001: entregando o quadro ¨PAU de SEBO¨ ao EsqdVF-1.

No quadro, onde retratei o caça McDonell Douglas AF-1A/B SKYHAWK mono e biplace, aproveitei, também, para desenhar o novo Navio-Aeródromo da MB, o A-12 SÃO PAULO, adquirido em 2000, para substituir o eterno A-11 MINAS GERAIS. Em ambos, fui, por diversas vezes, testemunha da retomada da ASA FIXA em conveses de voo brasileiros.

Oficialidade do EsqdVF-1 recém-inaugurado. Ao fundo, o AF-1 Skyhawk (agachado, terceiro da direita para a esquerda)

Neste período no VF-1, segui apoiando a justa campanha em prol da Segurança de Aviação, tanto que, no final de 2000, ganhei a capa da agenda de planejamento mensal da SIPAAerM para o ano de 2001. Como ainda estava no esquadrão de caça, desenhei um AF-1A se aproximando, perigosamente, de um prego bem pontiagudo, pondo em risco seu pneu aterrorizado, diante do virtual Dano por Objeto Estranho (DOE). A revista, para minha felicidade e honra, foi espalhada por grande parte da MB, com meu desenho na capa, já que a tiragem foi significativa, como no caso do cartaz de 1999. Muita generosidade de Deus.

Capa do Planejamento Mensal da SIPAAerM para o ano de 2001.

 

De volta ao HU-1, em 2001, prossegui minha vida. Neste contexto tive, rapidamente, o privilégio de ser selecionado para compor o Destacamento Aéreo Embarcado (DAE) do HU-1 em duas Operações Antártica (OPERANTAR), a XXI e a XXII, nos verões antárticos de 2002-2003 e 2003-2004, a bordo do destemido e já mencionado H-44 ARY RONGEL, voando o intrépido e valente UH-13. Foi, para mim, o auge de minha carreira profissional como piloto de UH-13 e, curiosamente ou não, isto se refletiu na mais prolífica fase de meus desenhos, a serviço da Aviação Naval e da MB.

OPERANTAR XXII, no verão antártico 2003-2004: voando o valente UH-13 N-7062 na Península Antártica.

Comecei desenhando a camisa dos DAE da OPERANTAR XXI, retratando todos aqueles abnegados heróis da aviação que dedicam suas vidas à MB e, muitas vezes, como nestas operações, ficam muito tempo longe de casa, a serviço da Pátria.

As revistas O GROWLER da OPERANTAR XXI e XXII

Mais pra frente, recebi a honra de desenhar a revista O GROWLER, que retratava o cotidiano da tripulação de uma forma bem humorada. A ela complementei com um quadro, eternizando, em formato de cartoon, a tripulação do H-44, responsável por representar a MB, e o Brasil, no ponto mais remoto do Atlântico. Fez, graças a Deus, sucesso e na OPERANTAR seguinte, retornei ao ARY com a responsabilidade de fazer o GROWLER 2 RELOADED (alusão bem-humorada ao grande sucesso do cinema na época, MATRIX 2 RELOADED). Modéstia à parte, deu certo de novo.

Entregando o quadro retratando toda a oficialidade do NApOc ARY RONGEL na OPERANTAR XXI

Já de volta da Antártica, em 2005, fui servir no Comando da Força Aeronaval (FORAER). Mas mesmo assim, continuei voando bastante os UH-12 e UH-13, agora como ASA do esquadrão e não mais tripulante. Lá, meus desenhos encontraram uma nova forma de contribuir, ilustrando, por alguns anos, a seção NOS TEMPOS DO CACHECOL da revista A MACEGA, à época, o informativo bimestral da Aviação Naval.

Ilustrando a Coluna NOS TEMPOS DO CACHECOL da revista A MACEGA

Nela, ilustrava os ¨causos¨ folclóricos dos antigos aviadores navais. Uns plenamente verdadeiros e outros…bem, nem tanto assim. A minha tirinha O MACEGUILDO, que também ilustrou algumas edições da referida revista, nasceu daí.

Tirinha de O MACEGUILDO na revista A MACEGA da Aviação Naval

Foi uma forma divertida de aprender muito sobre aqueles VELHOS ÁGUIAS que me antecederam e construíram, com muito suor e dedicação, as bases da fascinante Aviação Naval. Ao ir desenhando suas estórias, e a elas ir adicionando as minhas próprias estórias, vividas nos céus e mares da vida, compreendi que ser aviador naval, além de relevante profissão em prol da MB e do Brasil, é uma fantástica jornada. E a forma que encontrei, para retribuir tudo isto, era seguir desenhando e retratando, ao máximo possível, parte daquilo que vivia e vivenciava nos céus e nos mares.

Quarto do primeiro filho cheio de desenhos de helicópteros.

Foi também neste momento que DEUS me deu minhas duas maiores alegrias, meus dois filhos. Até nas portas e paredes do quarto das crianças, na casa da Vila Aeronaval, onde morávamos, quando eles nasceram, fiz questão de desenhar minhas aeronaves. Com um rostinho bem humano e simpático, claro, para não sair traumatizando os bebês.

Em 2007, enquanto eu desenhava os helicópteros para a Aviação Naval, meu filho, aos dois anos, já me acompanhava, desenhando os ¨licópetos do papai¨

Foi aí que comecei a perceber como um desenho pode ser inspirador, não só para quem o faz, mas para quem o vê também. Bem novinho, meu filho já pedia papel e lápis, ¨para desenhar os LICÓPETOS igual ao papai¨, tudo isto sob a rigorosa revisão e supervisão da irmãzinha. Eu, como pai coruja, aviador naval e metido a fazer rabiscos, percebi que era um prenúncio do dom de desenhista que ele, hoje, com 15 anos, já mostra ser uma incontestável realidade.

A partir de 2011, no entanto, e após incríveis 15 anos voando as aeronaves da MB, começou o processo natural na vida de qualquer aviador naval, de seguir para missões mais administrativas, longe do voo, dando espaço para o ¨sangue novo¨ que, ainda bem, sempre chega aos esquadrões. Vieram outras missões, que me deram muita satisfação, na própria MB e na FAB, no Brasil e no Exterior, mas não mais ligadas ao dia a dia dos voos de meus queridos UH-12 e UH-13. Não havia mais o ronco da turbina acionada. Não havia mais o trepidar das pás do rotor contra o vento. Não havia mais o pouso, nos limites do balanço e caturro, nos conveses de voo, ao sabor do mar bravio.

Curiosamente, foi também a partir de 2011 que fui, progressivamente, diminuindo a confecção de novos desenhos. Talvez seja uma coincidência, talvez não. Talvez seja somente dificuldade em achar vontade, à medida que os anos vão se acumulando. Mas, hoje, olhando 25 anos para trás, olhando para aquela primeira bolacha de 1995, acho que começo a entender, claramente, o porquê. Voar era o combustível dos meus desenhos, assim como meus desenhos eram o combustível para o meu sonho de voar. As duas coisas sempre andaram juntas. Sempre!

Mas, vez em quando, me surpreendo a rabiscar e, quando me dou conta, lá está uma aeronave estilizada, que nem existe, só em minha imaginação, em um céu distante, sobre um mar azul. Não adianta. A força de um hábito, de quase 50 anos, não se supera de um dia para o outro, talvez nunca. Nem quero.

Da esq para dir: segundo agachado.

Assim, ao retornar para o presente, após uma inesquecível vida nos ares e nos mares, a qual agradeço a Deus todos os dias, e após um longo tempo colocando meus modestos desenhos a serviço da Aviação Naval, e da MB, vejo meus traços renascerem, agora muito melhorados, nas mãos de meu filho, com, claro, o apoio incondicional da irmã, da mãe e do pai.

2009: revisando os desenhos do irmão.

Os “LICÓPETOS” não estão mais lá, mas segue viva a emoção de retratar nos desenhos os sonhos, agora os dele, que, um dia, serão realidade.

Assim, como aconteceu com aquele garotinho, do início dos anos 70, que, ao ver uma aeronave nos céus, corria para rabiscá-la em um pedaço de papel, de um caderninho surrado, sonhando e voando sobre os mares, nas asas dos desenhos.

2020 : o legado em boas mãos.

NOTA do EDITOR: Agradecemos ao nosso amigo Comte Olivé pelo texto, que ilustra bem o amor pela nossa Aviação Naval, que ajudou a ilustrar durante muitos anos da sua centenária história. Amigo de longa data desse Editor, possuo diversas publicações das revistas “BISAFO” e “A Macega” com seus desenhos.

Durante o embarque que fiz em 2015 no NApOc Ary Rongel (H 44), durante a OPERANTAR XXXIII, pude fotografar um dos seus desenhos que se encontram a bordo e a foto do DAE OPERANTAR XXI.

O autor é Aviador Naval e, hoje, VELHO ÁGUIA.

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