Itamaraty e Exército compraram da Crypto AG

Nuclear: Assinatura do acordo de cooperação nuclear em 1975

Por Andre Duchiade

Além das descobertas relativas à Marinha, os pesquisadores identificaram o uso pelo governo brasileiro de dispositivos da Crypto AG décadas atrás. Na ditadura militar, de acordo com documentos do arquivo da Agência de Segurança Nacional americana, a NSA, o Brasil chegou a fornecer equipamentos da Crypto AG aos outros países envolvidos na Operação Condor (Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, com eventual participação de outros países).

“Todos os países pertencentes à organização Condor mantêm comunicações (…). O sistema de criptografia empregado pela Condor é um sistema de máquina manual de origem suíça entregue a todos os países da Condor pelos brasileiros e com a designação CX-52”, diz um documento. Como hoje se sabe que as máquinas sofreram interferência da NSA, os pesquisadores concluem que “isso prova que funcionários do governo americano estavam cientes dos sequestros, tortura e assassinatos realizados pelas ditaduras que participaram da Condor”.

No Arquivo Nacional, também foi descoberto um certificado de importação de 80 máquinas CX-52 e sete Hagelin B-621-b em 1971, adquiridas pelo Itamaraty diretamente da Embaixada da Suíça. Há ainda outros documentos do Itamaraty mencionando criptografia em 1965, 1960 e 1958.

Vínculos antigos

Comunicação secreta entre embaixada da Suíça e Itamaraty sobre compras de maquinas de criptografia em 1971. À direita, documento da NSA indicando que Brasil distribuiu equipamentos para outros países Foto: Arquivo Nacional e NSA

Uso disseminado

A menção mais antiga foi encontrada no arquivo da NSA e data de 1955. Aponta que, naquele ano, o Exército brasileiro já era cliente da Crypto AG, e tinha interesse em comprar 500 máquinas criptográficas. A empresa não acreditava que uma encomenda tão grande pudesse ser atendida de uma vez. Àquela altura, a Marinha já dispunha de pelo menos 60 equipamentos. Segundo os pesquisadores, há fortes evidências de que a empresa suíça era então a única fornecedora de dispositivos de criptografia ao Brasil. O país planejou começar a importar equipamento americano, mas Washington barrou o plano.

Novos dados devem ser descobertos nos próximos anos, conforme documentos recém-disponibilizados no arquivo da NSA em Maryland forem analisados. Entre estes, há pastas reunidas pela Inteligência americana com nomes como “Codificação e decodificação no Brasil”, “Análise do trabalho criptográfico e criptoanálise no Brasil” e “Correspondência [do Brasil] de e para as embaixadas alemãs”.

Brustolin afirma que provavelmente as máquinas da Crypto AG eram utilizadas por mais órgãos brasileiros: Quando se utiliza esse tipo de máquina, você não pode ter de outros fornecedores, ou seus órgãos não se comunicam, por incompatibilidade. Havia poucos produtores deste tipo de equipamento, e a Crypto AG era o principal no mundo. Se você tem um equipamento dela no Itamaraty, para o ministério se comunicar com as Forças Armadas, precisará ser um aparelho da mesma empresa, ou então a mensagem não será lida. Então é possível que as demais máquinas empregadas pelo governo fossem compatíveis.

Resposta da Marinha

Em sua resposta, além de afirmar que “desconhece, oficialmente, alegações de comprometimento da qualidade ou da segurança” dos equipamentos, a Marinha disse que estes “atendem requisitos técnicos e de segurança, e são amplamente testados pela Força antes de serem operacionalizados”. Acrescentou que os itens encontram-se em teste e não entraram em operação, e confirmou que alguns iriam para os submarinos.

Por fim, a Marinha disse que “participa do desenvolvimento do RDS (Rádio Definido por Software) em conjunto com as demais Forças Armadas”, projeto que tem como objetivo o desenvolvimento de uma família de equipamentos de rádio. A Força acrescentou que “utiliza softwares e algoritmos próprios para a proteção de dados sigilosos”, sem especificar quais. O Ministério da Defesa não especificou se as outras Armas ainda são clientes da Crypto AG, mas disse que “as Forças Armadas zelam pela segurança das informações, tratando o assunto com todos os cuidados necessários”.

Aviso do novo dono

Em 2014, a empresa “fortaleceu a sua presença na América Latina” com a abertura de um escritório na Barra da Tijuca, no Rio. Em 2015, ele era o único no Hemisfério Ocidental além de Zurique, e um dos únicos cinco do mundo. Não está claro até quando esta sede funcionou.

Em 2018, após ter sido deficitária por anos, a empresa foi desmembrada. As contas internacionais foram vendidas para Andrew Linde, um empresário sueco, que afirmou ao Washington Post que desconhecia os acionistas da Crypto AG, que nunca vieram a público, quando a adquiriu. O atual nome operacional da empresa é Crypto International AG, e é ela que oferece os produtos que eram do portfólio da Crypto AG.

No site da empresa, há uma advertência de que “a empresa foi fundada em 2018 e tem um proprietário diferente, uma administração diferente e uma abordagem diferente em comparação à Crypto AG (…) Nunca houve qualquer afirmação de que um equipamento vendido pela Crypto International AG foi manipulado”. Procurada pela reportagem, a empresa confirmou vender a plataforma HC-2650, adquirida pela Marinha, mas disse que não cita os seus clientes.

De acordo com os pesquisadores, as descobertas levantam questionamentos sobre episódios históricos e também sobre a segurança nacional no presente. Dennison de Oliveira se pergunta, por exemplo, se EUA e Alemanha espionavam a comunicação sigilosa brasileira em 1975, época do acordo nuclear com a Alemanha. O Brasil negociava com os dois países e, após enfrentar jogo duro americano, assinou um pacto com os alemães. Oliveira suspeita que “houve um conluio entre os dois países, a par de tudo o que acontecia do lado brasileiro, para empurrar um acordo péssimo”.

Mas o programa nuclear é só um exemplo. A Operação Condor, comunicações relativas à Petrobras, à Embraer, ou a praticamente qualquer área da construção do Estado nacional, podem ter sido decisivamente impactadas pela espionagem eletrônica da Crypto.

Os pesquisadores se perguntam por que o Brasil foi um dos poucos países a continuar a comprar da companhia, após amplas denúncias públicas e ela ter sido deixada de lado por vários países. Brustolin afirma que a melhor alternativa do ponto de vista estratégico é uma tecnologia de criptografia produzida pelo Estado. Ele cita um centro de criptografia dentro da Abin, e diz que o seu desenvolvimento é viável.

Espionagem e 5G

O pesquisador aponta também uma consequência atual: os EUA pressionam o Brasil a não adotar a tecnologia 5G chinesa, acusando Pequim de adulterar os seus equipamentos para permitir espionagem. Brustolin se pergunta como essas acusações podem ser feitas por Washington, tendo em vista suas práticas de décadas.

 Quando veio ao Brasil, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA disse que a China adultera tecnologia para espionagem, afirmou. Eu gostaria de saber se ele continuaria a dizer que a tecnologia de 5G americana é a mais segura. Denunciam muito a China, mas, até hoje, as únicas provas de equipamentos adulterados que temos são dos EUA. O governo brasileiro também precisa responder quais ações estão previstas no leilão para garantir que não haverá espionagem, qual solução oferecerá para esse problema. É importante termos consciência de que essa é uma discussão de soberania.

FONTE: O Globo

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