Segurança Internacional: Novos desafios e o papel do Brasil

CelsoAmorim

Aula Magna do Ministro da Defesa, Celso Amorim, no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Vivemos uma época pontuada por incógnitas e paradoxos.

Uma ampla redistribuição do poder mundial, de efeitos em princípio positivos, convive com tendências preocupantes de desestabilização.

Dois fatos que vieram a público na semana passada sugerem as dificuldades que alguns desses processos colocam para certas categorias com que estamos acostumados a pensar o mundo.

Na segunda feira, dia 30 de setembro, um escritor alemão de origem búlgara, que se encontrava em Salvador da Bahia, foi impedido de embarcar em um voo com destino a Miami.

Embora seu visto estivesse em ordem, ele teve que retornar diretamente para a Alemanha.

Na ausência de maiores explicações, essa decisão foi atribuída ao fato de haver ele organizado, há algumas semanas, um abaixo-assinado (que reuniu mais de 70 mil apoiadores) contra o monitoramento de dados de cidadãos alemães pela Agência Nacional de Segurança.

Um dia antes desse episódio, o Ministro da Defesa britânico declarou que, e eu cito, “a Grã Bretanha construirá uma capacidade específica de contra-ataque no espaço cibernético e, se necessário, de ataque no espaço cibernético, no marco de um amplo espectro de capacidades militares”.

Essa afirmação foi considerada, pelo Financial Times, a primeira vez que uma grande potência faz um pronunciamento público e formal sobre o tema.

Embora os dois fatos sejam bastante distintos, a linha que separa o monitoramento de dados e a guerra cibernética é tênue.

De acordo com as informações disponíveis, o número de ocorrências de interceptação eletrônica e telefônica alcança a casa das dezenas, ou centenas, de bilhões.

Já as ocorrências conhecidas de ataque cibernético, como os que se abateram sobre a Estônia em 2007 e sobre o programa de enriquecimento nuclear iraniano entre 2009 e 2010, são muito menos numerosas (que se saiba).

O monitoramento de dados e a guerra cibernética têm em comum o emprego de instrumentos de altíssima tecnologia para atividades que importam em graves violações de soberania. Quando o objeto do monitoramento vai além da mera observação, e visa à tomada de conhecimentos tecnológicos, a fronteira entre a espionagem e a guerra fica ainda mais difícil de determinar.

Conceitualmente, não haveria diferença, salvo talvez no que diz respeito a danos imediatos, entre um ato de espionagem, de busca de informações econômicas e tecnológicas, e um ataque tradicional para a obtenção de um recurso econômico.

O monitoramento e a guerra cibernética podem alvejar tanto países tidos como hostis ou como ameaças imediatas quanto países amigos e aliados. Já sabemos que esse foi o caso na interceptação de dados. Não se pode excluir que o mesmo ocorra com ataques cibernéticos, provenientes de qualquer quadrante.

Essas duas atividades ilustram em tons muito fortes alguns dos novos desafios da segurança internacional. Não estou falando de algo abstrato.

Recentemente, nossos cidadãos, nossas empresas, nossa rede de postos diplomáticos e mesmo a Presidência da República foram alvos de intrusão. E a justificativa de combate ao terrorismo, oferecida para a coleta de informações, é rigorosamente infundada e descabida.

Em vista disso, e da ausência de explicações e compromissos adequados, a Presidenta Dilma Rousseff adiou sua visita de Estado a Washington.

A reação do Brasil também teve uma dimensão multilateral.

Cito as palavras da Presidenta na abertura da 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas, no mês passado: “Este é o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países”.

Dilma Rousseff discursa na ONU

O desafio aqui não é apenas político, mas também analítico, daí a importância da participação da universidade nessa reflexão.

A cibernética tem sido tratada por muitos autores como uma nova dimensão da guerra, para além das dimensões terrestre, naval, aérea e espacial.

Também se fala na cibernética como um vasto espaço sem fronteiras, comparável ao mar: um domínio onde não se podem traçar limites fixos, que serve como rota de transporte e como depósito de recursos.

A informação seria o principal recurso transportado e depositado na dimensão cibernética. Como em outras áreas, caso por exemplo do meio ambiente, este tem sido um campo propício para a tese de que os Estados perderiam espaço para atores privados ou não-governamentais.

É preciso tomar com um grão de sal, porém, as teses que anteveem um declínio do Estado a ascensão de atores não estatais no campo cibernético.

Igualmente, é preciso ver com cautela a ideia da perda de importância das capacidades militares físicas. Os armamentos cibernéticos podem ser usados para multiplicar a destrutividade de armamentos convencionais ou para facilitar o seu uso durante um conflito.

A infraestrutura crítica de um país pode ser afetada de muitas formas pelos ataques cibernéticos, desde áreas sensíveis da soberania nacional até áreas que podem desorganizar a vida da sociedade, como os sistemas bancário, metereológico, elétrico ou hospitalar.

Embora seja uma ameaça cronologicamente nova, a guerra cibernética parece incorporar-se com rapidez à antiga lógica do sistema de Estados.

David Rothkopf, editor-chefe da revista Foreign Policy, já sugeriu estarmos entrando em uma nova época de conflito, que chama em inglês de Cool War, em oposição à Guerra Fria, ou Cold War.

Segundo ele, a Cool War tem dois sentidos.

Por um lado, é menos “fria” do que a Guerra Fria, pois os ataques cibernéticos podem ser desfechados constantemente contra os Estados-alvo, sem que essa ação ofensiva resulte na eclosão de uma guerra convencional.

Por outro, essa guerra é “descolada”, no sentido que os jovens usam o termo, pois emprega equipamentos de última geração.

A esse propósito, é possível traçar um paralelo entre os armamentos cibernéticos e os veículos aéreos não tripulados, conhecidos em inglês como drones: ambos são equipamentos de altíssima tecnologia, que geram poucos riscos humanos e políticos para o atacante; e ambos são passíveis de serem empregados com certo grau de sigilo.

Na verdade, os drones potencializam uma ameaça que já existia com os bombardeios a grandes altitudes, ditos “de precisão ”.

Um exemplo que se notabilizou durante a Guerra do Kosovo, no final dos anos 1990, foi um ataque que se destinava a destruir um comboio militar sérvio, mas que, na verdade, vitimou uma caravana de cidadãos kosovares, que a OTAN se havia proposto a proteger.

Por essas razões, a assimetria tecnológica em favor dos países desenvolvidos nesses novos domínios militares enfraquece as restrições políticas ao emprego da força e incentiva a impunidade dos agressores.

A banalização da violência por parte dos detentores dos armamentos de ponta é uma ameaça a se temer.

Esse seria o sentido mais apropriado e também o mais inquietante que se poderia dar à expressão “guerra assimétrica”, frequentemente empregada na literatura especializada – de forma altamente seletiva – para designar as ameaças priorizadas pelos países desenvolvidos, provenientes de grupos terroristas, pirataria e crimes transnacionais.

No caso específico dos ataques cibernéticos, caberia uma indagação: não seria este o momento para se pensar em um tratado universal de proibição do “primeiro uso” de armamentos cibernéticos por qualquer país, isto é, um tratado de no first use?

A alternativa seria a escalada contínua do desenvolvimento de arsenais ofensivos e, a certa altura, a proposta de um tratado que congelasse as disparidades do poder militar cibernético, nos moldes do Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

A generalização de estratégias cibernéticas ofensivas poderia levar a uma escalada das tensões. Do ponto de vista da estabilidade internacional, o monitoramento de dados e a guerra cibernética representam graves fatores de desestabilização.

Os desafios colocados pela intrusão revelam o emprego de tecnologias militares novas para a perseguição de antigos objetivos estratégicos pelas principais potências. Essa dinâmica de competição exacerba padrões de conflito e tem repercussão para o conjunto do sistema internacional.

Os casos do escritor búlgaro-alemão que embarcava para a América do Norte e do cidadão brasileiro detido durante passagem pela Grã-Bretanha atestam o recrudescimento das barreiras ao livre fluxo de pessoas e os abusos de liberdade cometidos em nome da segurança nacional de determinado país.

E a criação de aparatos globais de intrusão e ataque reforça o poderio estratégico das principais potências e acirra a política do poder.

Esses novos fatores de instabilidade da segurança internacional se juntam a outros, presentes há mais tempo no panorama global, como os armamentos nucleares, as tensões de ordem étnica ou religiosa e as disputas de natureza econômica, como a competição por recursos naturais.

Em seu conjunto que não me proporei a inventariar, são esses os motivos de inquietação que contrastam com o auspicioso processo de redistribuição do poder mundial, que mencionei en passant, a multipolaridade.

Talvez a principal incógnita desse processo refira-se à possibilidade de que ele conduza a uma ordem multipolar em que a nota dominante seja a cooperação. Ou, em outras palavras, uma multipolaridade submetida a regras efetivamente multilaterais.

Este é, desde logo, um valor pelo qual devemos trabalhar.

A despeito da visão otimista sobre a prevalência da cooperação sobre o conflito na política internacional, que emergiu ao final da Guerra Fria, o conflito segue sendo uma característica do relacionamento entre os países.

Como o demonstra a sombra da conflagração interestatal lançada sobre o ambiente até então neutro da cibernética (ao menos na aparência), o conflito não só é persistente, como pode ter consequências tangíveis para o bem estar e a segurança das população.

Essa visão “realista” deve ser bem compreendida.

Martin Wight encerra seu clássico livro Power Politics com uma frase lapidar: “O realismo pode vir a ser algo muito bom: tudo depende de significar o abandono de ideais elevados ou de expectativas ingênuas”.

Um realismo que não perca o contato com o idealismo é apropriado para refletirmos sobre os dilemas de nossa presença em um mundo em transição. Todos conhecem bem o fato de que o esgotamento da ordem bipolar da Guerra Fria gerou o que foi chamado por uns o “momento unipolar”, e por outros a “ilusão unipolar”.

Nos início do século XXI, e especialmente na esteira dos atentados terroristas de Onze de Setembro, a unipolaridade conheceu seu auge.

Ao contrário do que pretenderam alguns de seus ideólogos, a primazia da superpotência remanescente não gerou estabilidade no sistema.

Como a invasão do Iraque em 2003 demonstraria, a extrema concentração de poder que levou um Ministro do Exterior francês, ainda nos anos 1990, a criar o neologismo “hiperpotência” era fonte de instabilidade em nível global.

O estímulo aos elementos incipientes da multipolaridade foi a resposta que o Brasil e outros países procuraram oferecer aos riscos do desequilíbrio unipolar.

A oposição clara na guerra do Iraque e a defesa da integridade do sistema multilateral das Nações Unidas, refletia sobretudo a preocupação com aspectos éticos e de defesa do direito internacional. Não deixou de conter, também, elementos da busca de um melhor equilíbrio do poder mundial. Daí um esforço de articulação com alguns países que tinham posição igual ou parecida com a nossa em um tema tão central.

Tão logo assumiu o Governo, em janeiro de 2003, o Presidente Lula associou-se aos presidentes Jacques Chirac, da França, e Gerhard Schroeder, da Alemanha, dois líderes da oposição à guerra.

Eu mesmo, como Chanceler, procurei unir minha voz à de outros ministros, como Igor Ivanov, da Rússia, Ioschka Fischer, da Alemanha, e Dominique de Villepin, da França, todos críticos da ação unilateral contra o Iraque.

Em outras áreas, como o comércio internacional, os países em desenvolvimento buscaram trabalhar pela redu ção das desigualdades.

Por meio de uma coalizão de países em desenvolvimento criada pelo Brasil, (o G20), defendemos com vigor a liberalização do comercio agrícola no marco da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio e impedimos que um acordo ditado pelos interesses dos Estados Unidos e da União Europeia fosse imposto aos demais.

Na esteira da reunião ministerial de Cancun, de agosto de 2003, países como Índia, Brasil e, mais recentemente, a China, passaram a dividir a mesa de negociação com as duas superpotências do comércio.

Embora as negociações ainda não tenham podido ser concluídas, estou seguro de que o resultado final de qualquer acordo global de comércio não poderá mais ser atingido sem que os interesses dos países em desenvolvimento sejam levados em conta, como ocorria no passado.

Vi recentemente, no noticiário, que o compromisso de eliminação total dos subsídios à exportação, que o G20 obteve junto aos grandes países agrícolas do Norte na reunião ministerial de Hong Kong, em novembro de 2005, ainda é uma baliza nas negociações sobre o futuro da Rodada de Doha.

Desejo destacar duas iniciativas em que países emergentes cooperam diretamente em favor de um mundo mais multipolar.

A mais visível delas é o Agrupamento BRICS, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Chefes de estado dos países que formam o grupo dos Brics posam para foto após reunião durante cúpula de G20 em Strelna, próximo a São Petersburgo Foto: Sergei Karpukhin/Reuters

Como é sabido por todos, os BRICS  na época, ainda sem a África do Sul, foram reunidos pela primeira vez em uma nova sigla por um economista do Goldman Sachs em 2001. A passagem de uma sigla do mercado financeiro para um grupo político que busca um papel central na construção de um mundo menos sujeito à hegemonia não foi simples.

Não é fácil mobilizar politica ou burocraticamente países do peso e da estatura de Brasil, Rússia, Índia e China (os membros originais) em torno de novas iniciativas.

No caso do então BRIC, o primeiro gesto foi do Ministro russo Sergei Lavrov, que me propôs que articulássemos um encontro à margem da Assembleia Geral de 2006. Esse encontro, realizado em uma pequena sala do prédio da ONU, foi um primeiro ensaio, já que o representante chinês limitou-se a ler uma declaração. Quanto ao indiano, não era o titular da pasta do Exterior.

Quem compareceu foi o Ministro da Defesa, Pranab Mukherjee, que mais tarde se tornaria, sucessivamente, Ministro do Exterior, da Fazenda e Presidente, mas que, à época, não se engajou profundamente na discussão.

No ano seguinte, 2007, ofereci um almoço de trabalho na residência da então Representante Permanente do Brasil junto à s Nações Unidas, Embaixadora Maria Luiza Viotti. Foi aí que os ministros tomaram a decisão de realizar uma reunião em um dos países membros do grupo, o que obviamente elevaria o seu perfil. A primeira reunião de chanceleres ocorreu em Ecaterimburgo, em 2008.

No ano seguinte, 2009, realizou-se, também na Rússia, a primeira cúpula presidencial. Esta foi seguida, em 2010, pela cúpula presidencial em Brasília. A partir daí, as reuniões vêm ocorrendo anualmente. Ao longo desse processo, os assuntos abordados se multiplicaram e se aprofundaram, passando a envolver inclusive temas de paz e segurança, energia e clima.

Os comunicados conjuntos dos BRICS contêm importantes formulações sobre esses temas, bem como sobre crises, como a da Síria, Líbia e Palestina, que não podem ser desconhecidas pelas demais potências.

É de se notar também que, a partir de 2008, os BRICS passaram a se coordenar de forma muito efetiva no âmbito do G20 Financeiro.

A despeito de diferenças pontuais importantes (a mais notável delas refere-se à reforma do Conselho de Segurança), a consolidação dos BRICS representou o fim da época em que duas ou três potências ocidentais, membros permanentes do Conselho, podiam reunir-se em uma sala, acertar sua posição e então fazer declarações em nome da “comunidade internacional”.

Tão visíveis quanto as iniciativas dos BRICS são seus críticos, especialmente no Brasil. De um lado, costumam argumentar que a heterogeneidade de seus membros dificulta o empreendimento de ações conjuntas. A recente decisão de criação de um banco de desenvolvimento do grupo parece-me eloquente a esse respeito. De outro, os críticos costumam apontar o grupo, com certo alarmismo, como um eixo de oposição ao Ocidente.

Não avaliam bem, com isso, as situações em que os interesses de um país se ligam ao interesse mais amplo de proteção do sistema.

Foi esse, por exemplo, o caso do papel construtivo desempenhado pela Rússia ao propor a eliminação do estoque de armas químicas da Síria e afastar os riscos de um ataque unilateral imediato àquele país.

O trabalho pelo reequilíbrio do poder mundial não se faz com a renúncia a ideais caros ao Brasil. O Fórum de Diálogo IBAS é a melhor prova disso.

O IBAS é uma aliança entre Índia, Brasil e África do Sul, fundada na identidade democrática, multicultural, multiétnica e multirracial desses três grandes países do mundo em desenvolvimento.

O IBAS começou a ser articulado já no dia 2 de janeiro de 2003, durante um encontro que mantive com a então Ministra do Exterior da África do Sul, Nkossazana Zuma.

Seis meses depois, em junho daquele ano, nossos três países formalizaram sua aliança com a Declaração de Brasília.

Desde então, nossas sociedades vêm entabulando um diálogo sustentado em várias áreas, promovido por intermédio deste Fórum.

O mesmo vale para a cooperação entre os governos dos três países nos mais variados campos, desde a realização de exercícios conjuntos entre suas marinhas até o pleito comum pela reforma do Conselho de Segurança (reafirmado de maneira enfática no interessante comunicado conjunto dos três chanceleres durante a atual Assembleia Geral).

O capital negociador do IBAS pode ser especialmente útil em situações de transição democrática como muitas das que hoje assistimos.

Os países do IBAS caracterizam-se pela capacidade de combinar a defesa firme do princípio da não intervenção com a sensibilidade para o apelo universal dos Direitos Humanos.

Isso se deve não apenas a uma disposição política, mas à experiência histórica de cada um deles na luta contra o colonialismo, o autoritarismo e o apartheid. Essa singularidade do IBAS é, inclusive, uma das razões pelas quais cuidei sempre, em meu tempo na chefia do Itamaraty, de preservar a identidade do IBAS em relação à identidade dos BRICS.

O equilíbrio entre o pragmatismo do BRICS e o vetor humanista do IBAS é indispensável, e – falando de um ponto de vista acadêmico – ajuda a aproximar o realismo do idealismo à maneira de Wight.

A criação de uma multipolaridade com o sustentáculo político-jurídico do multilateralismo é o objetivo último de grupos como o IBAS e o BRICS.

Um multilateralismo sem o esteio da multipolaridade pode ser puramente ilusório, e se limitar a refletir, no plano normativo, uma situação de “desequilíbrio unipolar”. Foi o que se viu no início dos anos 1990.

O risco de uma multipolaridade sem a âncora multilateral tem sido ilustrado nos últimos anos pelo desrespeito aos princípios da carta da ONU no encaminhamento das crises da Líbia e a da Síria.

No primeiro caso, o mandato de estabelecimento de uma zona de exclusão aérea para proteção da população civil líbia foi invocado para justificar a derrubada do regime.

No caso da Síria, as ameaças de ataque militar unilateral só não se concretizaram por um misto de circunstâncias parlamentares e diplomáticas.

A multipolaridade se presta, à vezes, a concepções enviesadas de multilateralismo.

Um professor da Sciences Po forneceu exemplo de uma delas, em artigo publicado no começo deste mês no Moscow Times. De acordo com seu raciocínio (e cito): “Quanto maior o número de países com o poder de bloquear ou vetar iniciativas internacionais, tanto mais difícil se torna o multilateralismo – e menos motivados os países dominantes a cooperação.” 

Essa passagem evoca, de certa forma, o conceito, corrente nos anos 1990, de “multilateralismo afirmativo”.

Este consistia, em traços gerais, na legitimação multilateral praticamente automática, pelo Conselho de Segurança, de iniciativas quer da superpotência, quer de alguns de seus aliados e por ela endossadas.

Hoje, esse automatismo parece cada vez mais difícil.

Diante dessa dificuldade, há aqueles que argumentam que a existência de consenso entre alguns membros do Conselho de Segurança poderia justificar uma ação unilateral por uma “coalizão dos dispostos” (coalition of the willing).

Um scholar norte-americano de Relações Internacionais defendeu há pouco, nas páginas do New York Times, essa atitude a propósito do bombardeio à Sìria, argumentando que a intervenção humanitária, mesmo que unilateral, é não só legítima, mas também legal, tendo em vista a suposta evolução do direito internacional na matéria.

De modo menos radical, mas com efeitos similares, o Ministro do Exterior frança, Laurent Fabius, propôs, citando o Presidente François Hollande, uma fórmula pela qual o consenso de três membros permanentes – aliado, naturalmente, à maioria dos votos – seria suficiente para desencadear uma ação.

Sugeriu, para tanto, um “código de conduta” pelo qual os membros permanentes do Conselho de Segurança renunciariam ao uso do veto em situações de morticínio em massa.

Fabius teve, ao menos, o bom senso de excluir dessa proposta situações em que “interesses nacionais vitais” de um dos cinco membros permanentes estivessem envolvidos.

Esses casos demonstram as resistências ainda existentes, nos dois lados do Atlântico Norte, à concepção de uma ordem multipolar assentada em uma governança global eficaz e reformada.

Essas reflexões não são estranhas aos desafios colocados pelas novas tecnologias à soberania nacional dos Estados. Sem o lastro de centros independentes nas relações internacionais, será difícil articular iniciativas de normatização do emprego dessas tecnologias de telecomunicação e informação, de nítido uso dual.

Um diretório de poder produziu o TNP, nos anos 1960, e suas desigualdades se explicam bem por essa razão. Uma multipolaridade com o sustentáculo multilateral tem muitos méritos em si mesmo.

Um deles é que propiciaria melhores condições para que as novas tecnologias militares de intrusão sejam objeto de regulação internacional, sem as assimetrias do passado.

Estamos acostumados a pensar o Brasil como um país pacífico.

E de fato é motivo de orgulho que, à exceção da Segunda Guerra Mundial, na qual fomos levados a participar por atos de agressão direta, só fomos à guerra há quase 150 anos atrás.

Mas ser um país pacífico não significa ser um país passivo, para o qual tudo serve, qualquer coisa está bem.

O Brasil tem uma vocação de ser um país provedor da paz.

Uma ordem internacional baseada em uma melhor distribuição do poder entre diferentes países e regiões será mais aberta à nossa influência em favor da paz.

Prover a paz significa adotar uma atitude ativa frente às grandes questões internacionais, e estar disposto a, dentro das possibilidades, contribuir concretamente para a solução das controvérsias.

Esta é a visão que tem inspirado a inserção internacional nos últimos dez anos.

E é também minha visão pessoal que, estou ciente, contrasta com outras visões a respeito da inserção internacional do Brasil.

Poderia identificar ao menos duas outras perspectivas.

A primeira é o isolacionismo, uma tendência sempre forte em um país de dimensões continentais, afastado de outras grandes massas territoriais do planeta, onde se situa a maioria das situações de conflito.

Essa perspectiva nos levaria a uma atitude de desinteresse em relação às grandes questões da vida internacional.

A segunda perspectiva é a de que a presença externa do Brasil deve observar os limites traçados por outras potências, e que o país não pode, ou não deve, almejar participar da política global, a não ser marginalmente.

Esta perspectiva se traduz em algumas ideias bastante difundidas.

Uma delas é o conceito de “potências médias”, que em certo momento teve o sentido de acentuar um certo grau de proatividade, mas que pode ser empregado em um sentido restritivo das possibilidades abertas a um país com nossas dimensões e características.

Outra é a doutrina da ausência de excedentes de poder, proposta originalmente no contexto dos anos 1980, mas que seguiu sendo empregada para justificar uma postura acanhada ou mesmo omissa no tabuleiro político internacional.

Essa perspectiva da ausência de excedentes de poder invoca vários tipos de argumentos, inclusive a existência as desigualdades sociais internas, que impediriam uma atuação internacional mais ativa.

Esse argumento desconhece que, por um lado, muitas dessas desigualdades estão sendo enfrentadas com sucesso, e que, por outro, algumas das soluções para os problemas do nosso desenvolvimento passam por uma atitude ativa de defesa de nossos interesses.

A doutrina dos excedentes de poder assume também formas mais sutis: é o caso daqueles que ressaltam a insuficiência dos meios militares, o chamado poder robusto, e sugerem que o Brasil concentre sua projeção externa no chamado poder brando.

A ideia de que o Brasil deva adotar uma política externa independente e uma política de defesa robusta encontra, no entanto, antecedentes respeitáveis.

Nenhum mais representativo do que o Barão do Rio Branco.

Há 105 anos, em 1908, ele defendia o fim do ciclo de intervenções e inimizades do Brasil com os Estados vizinhos, e dizia: “o (…) interesse político [do Brasil] está em outra parte. É para um ciclo maior que ele é atraído (…) entretendo com esses Estados [vizinhos] uma cordial simpatia, o Brasil entrou resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais, a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territorial e pela força de sua população”.

Participar desse “ciclo maior implicava estar pronto para defender os próprios interesses e compreender que ser pacífico não significa ser desarmado e tampouco ser passivo”.

Hoje, é possível reunir essas diretrizes na ideia de uma grande estratégia brasileira, que combina política externa e política de defesa com o objetivo de prover paz.

Do ponto de vista da política externa, e aqui falo naturalmente de minha experiência, prover a paz significa acompanhar, promover e, quando possível contribuir para o equacionamento pacífico de controvérsias.

Foi o caso, por exemplo, quando o Brasil e a Turquia negociaram, por solicitação do Presidente Barack Obama, um acordo de construção de confiança com o Irã, em maio de 2010.

Embora os Estados Unidos tenham depois se voltado contra a negociação e trabalhado para que ela não prosperasse, o sucesso que esses dois países emergentes tiveram em obter um acordo que nenhuma outra potência havia logrado junto ao Irã, demonstrou a efetividade que novos atores podem emprestar ao anacrônico processo político do Conselho de Segurança.

Longe de ser um fracasso, o acordo tem sido frequentemente citado – inclusive por uma ex-assessora direta da Secretária Hillary Clinton, a professora de Princeton Anne Marie Slaughter – como uma referência útil para a solução dessa controvérsia.

Temos uma presença significativa em operações de paz, no Haiti, no Líbano, e hoje um general brasileiro comanda a Monusco, missão de paz robusta na República Democrática do Congo.

Do ponto de vista da defesa, prover a paz significa estar pronto para dissuadir forças hostis que possam pretender ameaçar ou a agredir nossa soberania.

Para esse fim, o Brasil está levando a cabo uma série de programas, inclusive nas áreas estratégicas do submarino de propulsão nuclear e da defesa cibernética, com o objetivo de criar as capacidades necessárias para desestimular a interferência em sua soberania.

A necessidade de fortalecimento de nossas defesas cibernéticas dispensa maiores comentários. Mas vale enfatizar que só teremos segurança nesse campo se desenvolvermos tecnologias nacionais, tanto em hardware quanto em software, suscetíveis de evitar a existência dos chamados “backdoors”.

No que tange ao programa de submarinos, nunca é demais recordar que se trata de um navio com a propulsão nuclear, em absoluto acordo com nossas obrigações de não-proliferação, a começar pela proibição de uso da energia nuclear para fins militar inscrita na Constituição Federal.

Esse programa representará um salto apreciável e indispensável  em nossa capacidade de vigiar e proteger nossas vastíssimas águas jurisdicionais.

Muitas das resistências ao nosso submarino nuclear provêm daqueles que não desejam que o Brasil dê este salto, e, sob variados pretextos, defendem que a nossa Marinha se limite a uma frota de navios patrulha (que são, obviamente, essenciais, mas não são suficientes para enfrentarmos tanto ameaças assimétricas, quanto tradicionais).

A política de defesa também provê paz por meio da cooperação em nosso entorno estratégico e com outros países emergentes.

A América do Sul é nossa área primordial de cooperação, onde buscamos construir confiança, desenvolver projetos industriais conjuntos e estimular uma identidade regional de defesa, tanto no âmbito da Unasul quanto bilateralmente.

Para que o Brasil se projete no “ciclo maior” da política mundial, de que falava Rio Branco, deve estar cercado por um cinturão de paz e boa vontade na América do Sul.

Tomei conhecimento, por isso, com muita satisfação do livro editado pelo Professor Kai Kenkel, com participação da Professora Mônica Herz, sobre a cooperação especificamente sul-americana na área de missões de paz.

Outra área prioritária para a política de defesa é o Atlântico Sul, onde cooperamos com nossos vizinhos da orla ocidental da África por meio da Zopacas, Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, e de uma rede crescente de acordos bilaterais.

O Atlântico Sul tem uma história e uma dinâmica próprias.

Não nos convém importar rivalidades que foram típicas do Atlântico Norte ou que justificaram a formação de alianças militares.

Tanto mais que a principal dessas alianças – a OTAN – tem extrapolado o seu mandato original, seja no que se refere à área de cobertura geopolítica, seja no tipo de ação que empreende, passando da legítima defesa para operações que seriam na verdade de segurança coletiva.

Estas, por sua vez, vêm tendo seu sentido ampliado, com a invocação da “responsabilidade de proteger”.

(É interessante notar, adicionalmente, que o próprio tratado que estabelece a OTAN reconhece a “responsabilidade primária do Conselho de Segurança em matéria de paz e segurança internacional”. Assim, ações unilaterais como o bombardeio da Sérvia, em 1999, seriam, nos termos da própria carta da organização, ilegais).

Queremos o Atlântico Sul sempre livre da introdução de armas nucleares e da presença de organizações militares estrangeiras.

Temos trabalhado estreitamente com nossos vizinhos de além-mar para incrementar nossas capacidades conjuntas de vigilância e exercermos as responsabilidades que temos na proteção do Atlântico Sul.

Uma defesa robusta significa termos Forças Armadas aprestadas, modernas e integradas.

Mas significa também termos homens e mulheres altamente qualificados, inclusive com conhecimentos tecnológicos de ponta.

Ao contrário de cem anos atrás, quando o Brasil comprava do exterior seus principais equipamentos de defesa sem a capacidade de nacionalizar sua produção, hoje o desenvolvimento de capacidades autônomas na indústria de defesa é um objetivo fundamental de nossa política.

Radar nacional Saber M60

A Estratégia Nacional de Defesa, cuja segunda edição foi lançada no ano passado e agora acaba de ser apreciada pelo Congresso, define três áreas prioritárias desse esforço: a nuclear, a cibernética e a espacial.

A consolidação e expansão de nossa base industrial de defesa é uma das prioridades do Governo da Presidenta Dilma.

A autonomia absoluta neste, como em outros campos, é obviamente inatingível. A cooperação, bem concebida e realizada, pode nos permitir saltos. A diversificação de parcerias externas é indispensável para o êxito esse esforço.

O esforço de desenvolvimento de nossas capacidades de defesa é a contraparte necessária das ações externas em prol de um mundo mais equilibrado e multilateral.

É esse o sentido de uma grande estratégia que conjuga política de defesa e política externa em favor com o objetivo de prover a paz.

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