Meu primeiro ano de aviador

No dia 03 de março de 1960, fiz meu primeiro vôo. Começava aí a realização de um ideal, de um sonho de menino, de um destino de aviador militar brasileiro.

A aeronave, de origem holandesa e montada na antiga Fábrica do Galeão, hoje Unidade Logística da Força Aérea, era um Fokker T-21, matrícula 0734, tendo como instrutor o Ten Cunha.

Diferente do piloto civil, é exigido do piloto militar uma adaptação rápida a qualquer tipo de aeronave, isso desde o 1º avião. Solei o T-21 com pouco mais de 6 hs de vôo enquanto nos Aeroclubes um piloto sola com cerca de 30 hs de vôo.

Lembro-me, nitidamente, de três vôos dentre muitos efetuados naquele ano. O primeiro, como não poderia deixar de ser, foi a primeira vez que voei “solo” ou seja sem um instrutor, somente eu e o avião. Foi no dia 14 de maio de 1960, após 6:30 hs de instrução, no T-21 matrícula 0765.

Minhas horas de vôo em instrução:

10/04/60     T-21  763   00:50:00     Ten. Cunha

11/04/60     T-21  757   00:45:00     Ten. Cunha

21/04/60     T-21  733   00:50:00     Ten. Cunha

27/04/60     T-21  704   00:15:00     Ten. Kuhner

03/05/60     T-21  744   00:45:00     Ten. Kuhner

11/05/60     T-21  734   00:50:00     Ten. Kuhner

18/05/60     T-21  704   00:15:00     Ten. Kuhner

26/05/60     T-21  771   00:10:00     Ten. Kuhner

08/06/60     T-21  797   01:05:00     Ten Duarte

A sensação foi indescritível. Após 1:05hs de exame prático de vôo, com um oficial checador, Ten. Duarte, ouvi dele que estava solo e que poderia voar sozinho daí em diante.

Peguei o pára-quedas, cautela nº 126357   (guardo-a até hoje como recordação), dirigi-me ao avião escalado, T-21 S/N 0765, entrei cheio de confiança, confesso que sem receio nenhum, dei a partida e dirigi-me para a cabeceira da pista 17 do Campo dos Afonsos. Alinhei o avião com a pista, olhei a manete de aceleração e antes de deslocá-la para aceleração máxima, agradeci a Deus a graça recebida.

Ali, parado, havia feito uma coisa que não costumava fazer, porém foi espontâneo.  Naquela época escutava de todo mundo um pedido de alguma graça a Deus e eu também pedia para ser atendido. Um belo dia  dei-me conta de que eu apenas pedia e quando recebia a graça, esquecia-me de agradecer. Daí em diante, até hoje, para não ser injusto, não peço nada a Deus. Naquela hora, agradeci sem ter pedido, pois Ele me havia concedido alguma coisa fruto de meu próprio esforço. Dei-me conta, então, de que qualquer graça não depende só de Deus e sim de um esforço honesto, competência e sorte pessoal em consegui-la. Este fato norteou toda a minha vida.

O outro vôo marcante, no qual ganhei um apelido na Escola, foi um vôo solo no qual tentei fazer escondido num cantinho do Céu, algumas acrobacias sem ter recebido instruções para tal. Nos vôos pré-solo apreendiam-se, naquela época, algumas manobras simples e a mais radical, a manobra chamada parafuso. Deixava-se o avião perder a sustentação aerodinâmica e ele despencava com o nariz  em direção ao solo e rodando em seu eixo longitudinal, praticamente sem nenhum controle. Havia, naturalmente, um comando para se sair daquela situação e treinávamos “parafuso” para, caso acontecesse alguma anomalia aerodinâmica, sabermos como sair daquela situação.

Pois bem, “grande aviador”, inexperiente e com poucas horas de vôo, escutava, lembro-me bem de um colega, Cadete Eni Guedes nos “papos de alojamento”, que seu instrutor, Ten Barry Andrew Trevor Hancock, o havia ensinado a fazer loopings e touneaux rápido. O looping é uma cambalhota de avião e o touneaux  rápido, um parafuso na horizontal. Num dia, ensolarado e a tarde decolei com o firme propósito de fazer aquelas acrobacias.  Voei lá pelos lados do Aeroclube de Nova Iguaçu, subi para uns 300 metros e comecei a tentar fazer loopings e touneaux rápidos conforme tinha escutado do Guedes. Não consegui fazer nenhum e em todas as vezes entrei em parafuso. Ou eu estava de bobeira ou o Guedes havia contado vantagem sem ter feito coisa nenhuma de acrobacias.

Infelizmente, alguém notou aquele avião no céu tentando fazer alguma coisa sem conseguir. Foi o Cadete Hélius Ferreira Araújo que, em outro avião e voando solo, chegou a conclusão que o avião não era pilotado por um instrutor e sim por um “manicaca maluco” memorizando o número de série daquele T-21. Quando pousou, foi logo no quadro de escala de vôo para saber, pelo número do avião, quem era aquele cadete maluco. Não deu outra, passei a ser chamado de maluco durante o período de cadete e até hoje pelo Hélius.

O terceiro vôo marcante foi na final da pista 08 dos Afonsos. Vinha eu tranquilo para pousar, após uma hora de vôo solo, quando apareceu na minha frente um urubu. Na época eu não sabia que os urubus eram espertos. Quando em eminência de choque em vôo, eles fecham as asas e entram em parafuso livrando-se de eventuais ameaças. Minha reação foi desviar para cima a evidência do choque, tendo consciência que poderia entrar em parafuso a baixa altura o que seria fatal com a queda do avião. Fiz o movimento para cima e parei de puxar o manche, o urubu contribuiu para baixo. Ouvi o choque do urubu e nessa altura eu já havia controlado o avião.

Pousei sem problemas na pista 08. Sai do avião e fui ver se havia algum estrago. O urubu havia feito um “amassão” na parte inferior da asa direita. Relatei o ocorrido ao meu instrutor e ele, por força do destino, disse-me para nada contar que ele iria falar com o mecânico para consertar o “amassão”. Entrava aí, pela primeira vez na minha vida profissional, o “fator sorte”. O aviador antigo é, sem exceção, um sobrevivente, pois a aviação não perdoa aqueles que não nasceram com sorte.

Ainda neste primeiro ano, aconteceu um fato lamentável. O Ten Belfort, instrutor de T-21, solicitou à direção da Escola para dar instrução de T-6 para os Cadetes do terceiro ano aviador. Num dos vôos de readaptação ao T-6, o motor deu pane logo após a decolagem. O avião iria cair. Ele tentou voltar para a pista e não conseguiu. O avião colidiu com o solo em frente aos hangares chocando-se com um caminhão de combustível. O Ten Belfort faleceu.

Esse acidente, o primeiro dentre muitos que vivenciei no decorrer dos anos, ensinou-me a ser competente na arte de voar. Voar não era uma aventura irresponsável e sim uma ação a ser exercida com cautela, muito estudo e dedicação.

Finalmente, tornei-me veterano no final de 1960. Passei para o 2º ano como Aviador.

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