Os desafios e os planos do comandante da Minustah

Ajax Porto Pinheiro vai substituir o general José Luiz Jaborandy Júnior, morto no fim de agosto de causas naturais - Ailton de Freitas / Agência O Globo
Ajax Porto Pinheiro – FOTO: Ailton de Freitas

Marcado para hoje, o segundo turno das eleições presidenciais do Haiti foi adiado a menos de uma semana do pleito. A transição democrática de poder, apontada como uma das provas de que o país está pronto para manter a estabilidade em um futuro sem a presença de forças das Nações Unidas, ocorre em meio a um processo marcado por denúncias de fraude e protestos. Os haitianos aguardam posicionamento do Conselho Eleitoral Provisório (CEP) sobre a nova data — de acordo com especulações, o pleito deve ser agendado para 10 ou 17 de janeiro.

Em entrevista exclusiva ao Correio, o general Ajax Porto Pinheiro, comandante do setor militar da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), comentou o processo político e os avanços para a retirada definitiva de soldados estrangeiros do país.

Aos 59 anos, Ajax é o 11º comandante da Minustah, criada em 2004. Acostumado com o país, o general é um veterano na ilha caribenha. Dias depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010, ele desembarcou no país como comandante das forças brasileiras, mas precisou deixar o país antes de completar a missão, após ser promovido de patente. Em Porto Príncipe desde 5 de outubro, o general assumiu o posto antes ocupado por José Luiz Jaborandy Júnior, que sofreu um enfarte durante viagem ao Brasil, em agosto passado.

Antes do terremoto, a ONU previa a retirada das tropas para 2011. Os planos foram adiados depois que centenas de milhares de haitianos morreram e 1,5 milhão ficaram desabrigados. O desastre provocou uma reviravolta, e o expediente militar teve um salto, chegando a quase 9 mil soldados. Em outubro de 2015, apesar da pressão, o Conselho de Segurança na ONU renovou por unanimidade o mandato da Minustah, que acaba em 16 de outubro, mas pode ser postergado.

A demora para apresentar um plano de retirada tem despertado críticas sobre a missão. O general Ajax destaca que “não há uma força que não goste da presença da ONU” no país. “A reação é muito pequena, não notei desconforto com a nossa permanência. Se tivesse, a gente observaria na rua, mas não é o caso. As tropas circulam normalmente, a gente vê no olhar da população que não há antipatia”, conta. Seguindo recomendação do Conselho de Segurança, uma missão de avaliação das Nações Unidas deve visitar o Haiti após a posse do presidente, que deve ocorrer até 7 de fevereiro, quando se encerra o mandato de Michel Martelly, mandatário atual.

Em resposta aos protestos da oposição, Martelly criou uma “comissão de avaliação eleitoral”. A equipe deveria apresentar em três dias recomendações para o impasse. Como não houve consenso, a formação foi adiada. Para o segundo colocado nas votações de 25 de outubro, Jude Célestin, que obteve 25,29% dos votos, a iniciativa é “cosmética”. Célestin lidera o Grupo dos Oito, aliança de presidenciáveis que não aceitam o resultado do primeiro turno, no qual o candidato oficialista, Jovenel Moise, saiu na frente, com 32,76% dos votos.

Quais são os principais desafios do Haiti?

De imediato, são as eleições. Elas ocorrem aqui em três turnos. O primeiro foi em 9 de agosto (eleições legislativas); o segundo, em 25 de outubro (primeiro turno das presidenciais e das eleições locais); e o terceiro estava marcado para hoje (segundo turno das presidenciais). Por isso, as tropas estão de prontidão, não liberamos ninguém. A terceira fase de votações é o segundo turno presidencial, e há um impasse, com alegações e dúvidas sobre o processo eleitoral. O principal desafio é fazermos uma eleição tranquila, sem sobressaltos. É para isso que estamos trabalhando, toda a Minustah. Esse é o principal desafio. O outro é preparar o país para quando a missão da ONU sair, o que esperamos que ocorra. Sem segurança e sem estabilidade, os haitianos não têm como desenvolver, por exemplo, a economia.

Existe um plano para a retirada das tropas?

As avaliações necessárias serão feitas por uma missão de Nova York, que virá ao Haiti em março. É um grupo multifuncional, com quem vamos sentar e conversar durante três dias. Eles vão se encontrar com autoridades haitianas, com a parte militar, policial e civil da missão, a fim de avaliar e, posteriormente, definir no Conselho de Segurança quando a missão muda de configuração e quando ela se encerra. Hoje, nós não sabemos dizer. Uma das avaliações será a capacidade da polícia de manter a segurança. Em maio, provavelmente, a ONU baterá o martelo sobre o futuro da missão. O certo é que, até 15 de outubro do ano que vem, a missão permanece no formato de hoje, com os mesmos objetivos e com o mesmo pessoal, sem modificação. A partir de outubro pode haver alguma mudança. A tendência é que a missão diminua.

Os senhores enfrentam críticas em relação à permanência da missão?

A missão está presente aqui há 11 anos. Depois de tanto tempo, eu achava que encontraria uma rejeição natural de parte da sociedade, mas não vejo isso ocorrer. A não ser um ou outro parlamentar, que já se manifestou contra a presença de forças estrangeiras, o que é natural. A permanência da ONU, com toda a estrutura dela, atrai um benefício indireto, que faz muita diferença no país. Há uma grande quantidade de recursos que, indiretamente, são injetados na economia do Haiti: os salários dos executivos que estão aqui; as aquisições institucionais da ONU, como compra de combustível e manutenção das viaturas, por exemplo. Então, há um efeito positivo na sociedade. Acho que essa parte econômica contribui para que não haja uma reação grande. E a ONU é muito discreta, não tem atritos com a sociedade.

Quantos militares formam o contingente estrangeiro no país?

Somos 2.370 militares. As tropas são de Brasil, Bangladesh, Chile, Guatemala, Paraguai e Uruguai. Há um hospital militar da Argentina, além de contingentes menores de soldados de Honduras, El Salvador, e oficiais do Estado-Maior da Jordânia, Sri Lanka, Nepal, dos Estados Unidos, Canadá e México. No total, são 19 representações. Até julho passado, as tropas eram em torno de 8 mil homens. Houve uma redução, uma primeira fase, a fim de reduzir custos, o que está sendo feito em todo o mundo. Foi uma redução civil e militar. Os 2.370 permanecerão até outubro — esse é o número limite; menos que isso, nós teríamos problemas para responder à altura, quando convocados. Atualmente, são 850 brasileiros. O último batalhão a chegar aqui, da região de Pelotas (RS), tem a inédita presença de 25 mulheres. Na tropa antiga, eram 11. Acredito que, no total, o número fique próximo de 100. Na polícia da ONU também há várias mulheres. Faz parte de uma política da organização incentivar a participação do corpo feminino.

Em meados do ano passado, o Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (Ccopab) declarou que os objetivos da missão no Haiti não tinham sido atingidos e mencionou o treinamento da Polícia Nacional do país como um dos desafios. O senhor acredita que se avançou o suficiente?

A Polícia Nacional do Haiti (PNH) está chegando ao ponto esperado. Eles vão ter a capacidade de manter a segurança e a estabilidade do país, mas, no momento, caminham para esse objetivo. A ONU e os órgãos de assessoramento entendem que o efetivo ideal para a polícia é entre 15 mil e 16 mil homens. Hoje, são entre 10 mil e 11 mil policiais. Quando chegarem aos 16 mil, isso será um indicativo de que, em parte, a missão no país foi cumprida.

O processo eleitoral está marcado por protestos. Há algum temor em relação à segurança no próximo turno?

Estamos movimentando as tropas com helicópteros e viaturas para reconhecimento. Fizemos isso antes do dois turnos e estamos fazendo para o terceiro, independentemente da data em que ocorrer. Nós reposicionamos as tropas em pontos estratégicos, onde achamos que podem haver distúrbios, três dias antes das votações. É uma forma de mostrar à população que estamos presentes e de dissuadir os que desejam tumultuar. Todo o trabalho é coordenado com a polícia da ONU. A polícia local, PNH, participa da segurança direta dos locais de votação. Se houver emergência ou algum problema em local de votação, entra a polícia do Haiti. Se ela não resolver, convoca as tropas concentradas de policiais estrangeiros. Se os policiais não resolverem, aí pedem nosso apoio e entramos com a força militar.

Há data provável para a votação?

Existe uma data crucial para eles: o novo presidente terá que assumir em 7 de fevereiro, quando se encerra o mandato do atual. Tudo tem que estar resolvido até lá. Fala-se que as prováveis datas são 10 ou 17 de janeiro, mas nada é oficial ainda.

O que tem sido feito em relação às denúncias de abuso sexual? Há alguma investigação em curso?

Não temos nenhuma em curso e, se depender de mim, não terá nunca, porque não haverá motivo. Esse é um ponto de honra da ONU. As tropas recebem cartilha de orientação antes de partir para o Haiti. Ao chegarem aqui, as orientações continuam. Nas minhas mensagens, eu toco sempre nesse ponto, pois, para nós, é sagrado. Uso uma forma simples para evitar problemas. Nossas tropas ficam aquarteladas. Só saem em grupos entre 10 e 30 homens, para cumprir uma missão específica, e retornam à base. Um soldado nunca está sozinho no Haiti, não vai ao supermercado, não vai a restaurante, não vai a lugar nenhum. Está sempre dentro do quartel e só sai se for para a missão, fardado, ou se estiver de licença. Nesse caso, pode viajar para fora do Haiti, mas não dentro do país. Ele sai da base como civil, nós o levamos ao aeroporto e, quando retorna, nós buscamos, levamos para a base e ele veste o uniforme.

Recentemente, muitos haitianos e descendentes de haitianos que viviam na República Dominicana se viram forçados a se mudar para o Haiti. O senhor acompanha a situação dessas pessoas?

Isso é cíclico. Em algumas semanas, autoridades da República Dominicana deportam 100 haitianos. Eles são trazidos até a fronteira. Às vezes tem manifestação, mas não chega a ser uma preocupação nossa. A ONU monitora a situação, a República Dominicana conta com uma tropa própria na fronteira, comandada por um general do país. Nós mantemos um bom relacionamento com eles; inclusive, fui convidado para visitá-los em janeiro, como cortesia, para conhecer o sistema deles e ver como trabalham. Mas há momentos de maior tensão, que ocorrem cerca de uma vez por mês. Depois, as coisas se acalmam. Os países têm conversado, feito reuniões, e acredito que estão mantendo um bom diálogo. Esse, porém, não é o principal problema do Haiti, na nossa avaliação.

O senhor esteve no Haiti em 2010. Como foi retornar?

Em 10 de janeiro de 2010, mandei para cá o primeiro grupamento que treinou comigo no Brasil. O terremoto foi no dia 12 e eu cheguei logo depois, na mesma semana, com a segunda leva das tropas. O Haiti estava melhorando. Em 2010, o país estava em bom rumo, as coisas davam certo. Com o terremoto, foi como se a gente tivesse voltado no tempo para antes de 2004. Mas, agora, está bem melhor. Eu noto, nas ruas, os prédios que estão surgindo. Há um bom astral. Em cinco anos, o Haiti melhorou muito mais do que eu pensava que pudesse ter melhorado. Para mim, foi uma emoção. Foi como se eu fosse completar um trabalho que não consegui concluir naquela época. Eu fui promovido aqui. Estava no Haiti quando recebi minha promoção para general e tive que voltar ao Brasil. Fui comandar uma brigada no sul do país. Agora, com o falecimento do meu amigo (general José Luiz) Jaborandy (Júnior), precisaram fazer a substituição. Foi uma correria, mas, ao mesmo tempo, foi muito gratificante. Eu falo como se fosse a minha última aventura de soldado.

FONTE:Correio Braziliense

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