Chile x Peru, um pedaço de mar e a perigosa guerra fria

diferendo marítimo

Seis anos após registro de ação peruana, Corte Internacional de Haia emitirá veredito em 27 de janeiro

Em sua edição de 10 de janeiro passado, a rede privada chilena de telecomunicação, “Rádio Biobío”, causou espanto e apreensão com a seguinte manchete matutina: “Ordenan acuartelamiento de Fuerzas Armadas y Carabineros ante requerimiento peruano contra Chile por fallo de La Haya”. O que era aquilo: o Chile iniciando uma guerra?

Contudo, poucas horas mais tarde, a mesma rede Biobío alertava seus leitores com um desmentido: “Rectificación pública: difusión de documento falso sobre acuartelamiento por fallo de La Haya”. Nele, Álex Chaván, porta-voz substituto dos Carabineros, a PM chilena, assinalava que o documento citado pela rede “não se atem à institucionalidade”, portanto não merecendo crédito, mas que medidas judiciais cabíveis seriam tomadas contra seus autores apócrifos. Em gesto finalmente constrangedor, a Biobío pedia desculpas, tratando de “evitar que un caso similar vuelva a producirse en el futuro”. Desde então, no link para o “documento falso”, lê-se “pagina no encontrada”. A matéria foi tirada do ar, mas suas reproduções resistem teimosamente na internet e suscitam questionamentos.

O mar da discórdia

O que transparece na notícia, falsa ou não, veiculada pela rede Biobío, é o nervosismo como procedimento de Estado face ao veredito que a Corte Internacional de Justiça (CIJ), da ONU em Haia, emitirá no próximo dia 27 de janeiro, depois de apreciar uma demanda marítima do vizinho Peru, protocolada em 2008.

Entretanto, do mesmo modo como o Chile se comporta desde que a Bolívia lhe exige uma saída ao mar, pinochetistas e seus sucessores democráticos vinham fingindo-se de surdos ao insistente pedido do Peru para sentar à mesa e negociar uma acordo extrajudicial. Em resposta, durante anos ouviu-se uma retórica inflexível e autoritária: “Não há pendências territoriais entre o Chile e o Peru e o Chile não discute tratados em vigor” – ponto!

Após meio século de administração de um modus vivendi que não era de jure e o prejudicou, o Peru reclama que o limite marítimo dos dois países, entre Tacna e Arica, não é o Paralelo que cruza o ponto onde termina a fronteira terrestre (18º 21′ 03” segundo o Chile, 18º 21′ 08” na versão do Peru) e, sim, uma linha equidistante traçada desde a fronteira. Esta diferença criou uma zona de disputa de 38.000 Km2, desde o fim da Guerra do Salitre (1879-1883) sob jurisdição chilena e lucrativamente explorada por suas frotas pesqueiras.

Para se ter ideia da importância econômica do contencioso, é oportuno assinalar que 30% dos lucros da empresa Corpesca – do multibilionário Grupo Angelini do Chile, oligopólio extrativista em pesca, monoculturas florestais e distribuição de combustíveis – têm sua origem no triângulo oceânico em litígio, motivo pelo qual, desde 2011, o grupo assessora e pressiona o governo Sebastián Piñera para não ceder as águas reclamadas pelo Peru.

Via Crucis

Com sua inflexibilidade, o Chile não apenas colheu impopularidade entre seus vizinhos, mas criou dificuldades para sua própria defesa, misturando alhos com bugalhos, pois os acordos em que se baseia sua argumentação não passam de convênios de pesca, astutamente interpretados pelo Chile como “tratados de limites marítimos”.

A campanha peruana para que esses limites fossem revistos e definitivamente fixados, iniciou-se em 1985, quando o então Chanceler do Peru, Allan Wagner, pela primera vez abordou o tema com Jaime del Valle, ministro do exterior da ditadura Pinochet. Em 1986, o embaixador peruano em Santiago, Juan Miguel Bákula Patiño, voltou a entrevistar-se com Del Valle, gerando uma declaração na qual o Peru insistia na assinatura de um Tratado de Fronteiras Marítimas.

A resposta chilena prometia “estudar o caso”.

Em 1997, ratificou a Convenção sobre o Direito Marítimo, em 2000 submetendo à ONU cartas náuticas, nas quais indicava o Paralelo 18º21″00″ como sua fronteira marítima com o Peru. Ao que o Peru replicou com uma declaração de janeiro de 2001, rejeitando tal Paralelo como fronteira.

A divergência ganharia temperatura em 2005, quando o Congresso peruano aprovou o projeto de lei que estendeu os domínios marítimos do país para 200 milhas, utilizando uma linha bissetriz na zona sul de seu mar, limítrofe com o Chile, e apoiando-se no Tratado de Lima, de 1929. Enquanto o Chile considera que a linha está 182,3 metros em terra firme, segundo a interpretação do Peru a linha está localizada na costa (“Punto Concordia”).

Como o Chile, mais uma vez, não respondeu às interpelações do vizinho, em janeiro de 2008 o governo Alan García protocolou sua demanda na CIJ, com o título “Caso concernente à delimitação marítima entre a República do Peru e a República do Chile”.

O temível espectro da Nicarágua

Em clima de ressaca do Ano Novo, o presidente Sebastián Piñera convocou duas reuniões em caráter de urgência, a primeira delas, com três horas de duração, ao lado de sua sucessora eleita, Michelle Bachelet, e a segunda com o Conselho de Segurança Nacional – instrumento criado mediante a constituição pinochetista de 1980, do qual participam as três armas das FFAA – para avaliação do que aguarda o Chile na CIJ em 27 de janeiro.

Encerrada a reunião com Bachelet, Piñera tentou serenar os ânimos crispados, afirmando que o veredicto era esperado “com tranquilidade, sem triunfalismos”, enquanto Michelle Bachelet limitou-se a repisar o bordão nacionalista: “Esperamos que o veredito esteja ajustado ao Direito, porque o Chile tem uma clara opinião muito unânime sobre onde estão os limites [maritimos]”.

O que une direita, militares e a Nova Maioria de Bachelet é o temor face a uma sentença da CIJ como a emitida em novembro de 2012, favorável à Nicarágua em sua demanda contra a Colômbia. Naquela oportunidade, foi dado ganho de causa ao país centro-americano, que reclamava um área marítima de 50000 km² em torno do arquipélago San Andrés, no Caribe.

Peru preparou-se melhor

Noves fora a minoritária esquerda chilena autêntica, simpática aos pleitos do Peru e da Bolívia, é difícil encontrar no Chile analistas que não repitam o batido discurso de Estado. Nadando contra a maré do pensamento único está o eminente historiador Roberto Hernández Ponce, da Universidade do Chile.

Em entrevista concedida à edição de 26 de dezembro de “El Mostrador” (Santiago), Hernández adverte que “quando o Peru nos aciona em Haia, o faz com fundamentos bem construídos e baseado na evolução do Direito Marítimo. Já o Chile, o que parece descuido diplomático, durante décadas ignorou os limites marítimos com o Peru. Os limites territoriais estavam perfeitamente estabelecidos no Tratado de Lima de 1929, e quando detonaram problemas pesqueiros sobre os usos do mar patrimonial, arranjaram-se alguns convênios na década de 1950, cujo efeito foi a prolongação da linha do Marco 1, pela qual o Peru domina a área em direção ao norte e Chile ao sul. Mas este foi meramente um convênio – repito: um convênio”.

Para Hernández, a posição do Chile complicou-se porque simplesmente ignorou os pleitos de seus vizinhos e destaca a atuação do Peru, que não perdeu tempo, saindo a campo, fazendo levantamento cartográfico in situm, contratando técnicos e cientistas com notório saber, desta forma qualificando sua argumentação. “O Peru foi mais hábil diplomaticamente, mais constante e juridicamente mais consistente… O Chile começa a defender-se e esse é um primeiro obstáculo”, conclui Hernández.

Contudo, faltando poucos dias para a divulgação da sentença em Haia, críticas à administração chilena fazem-se ouvir nas próprias hostes. É o caso do jurista Hugo Llanos Mansilla, Master em Direito Internacional na Universidade de Harvard e um dos advogados que assessorou a chancelaria chilena durante a tramitação do processo na Holanda.

Segundo depoimento de Llanos à “CNN Chile” e ao portal “Publímetro” (15/01/2014), a própria convocação do Conselho de Segurança Nacional pelo presidente Piñera é uma indicação de que “hay un problema delicado en relación con el fallo y que se están tomando las medidas para que la población chilena se adecúe a los resultados”. O que a opinião pública ignorava e que Llanos informa pela primeira vez, é indicador ademais de que nas hostes militares chilenas o nervosismo alcançou a escala de perigoso estresse: nas últimas semanas, Sebastián Piñera reuniu-se 20 vezes com os comandos das FFAA.

Llanos critica a falta de provas convincentes e a aposta triunfalista da administração chilena: “Se a coisa tivesse sido tão simples e clara como foi colocada pelo Chile, em 3 meses teríamos conquistado um veredicto 100% favorável ao Chile, mas depois de um ano não poderá ser tão favorável assim”. E conclui: “Cometeu-se o tremendo erro de não advertir a população de que poderemos perder. Afirmou-se teimosamente que os títulos do Chile são impecáveis, mas eu temo que o resultado não vai ser esse”.

Caso o Chile perca a ação na CIJ, direita e Nova Maioria garantem implementar as exigências do veredicto, mas 62% dos peruanos desconfia da promessa, recordando a reação do presidente colombiano Juan Manuel Santos à resolução da CIJ: «…Isso tudo são omissões, erros, excessos, inconsistências, que não podemos aceitar”.

Guerra fria

Perdedor da Guerra do Salitre (1879-1883) – que na historiografia oficial chilena é conhecida por “Guerra do Pacífico” e que na definição de alguns historiadores e ensaístas foi a “Guerra dos Ingleses”, que a provocaram, financiaram e dela lucraram como donos de 90% das empresas de salitre do Atacama – mas ganhador inconteste da batalha midiática em curso, o Peru celebra o veredicto por antecipação e com indisfarçáveis ares de “revanche”, estimulando o rebrotar do que o semanário “Cambio 21”, alinhado ao Partido Socialista do Chile, denunciou em letras garrafais e caixa alta como “DELIRIO BÉLICO PERUANO” em sua edição impressa de 7 de janeiro último, fazendo referência às manchetes dos jornais peruanos “La Razón” e “El Men”.

Contudo, a indignação de “Cambio21” omite o óbvio, pois a campanha belicista, em palavras e ostentação de armas, foi iniciada pelo próprio Chile depois que o Peru apelou à CIJ, para julgar o direito de posse sobre os 38.000 km2 de mar agitado.

As provocações tiveram início em janeiro de 2010, quando o comandante da força aérea do Chile, Gal. Ricardo Ortega, saiu-se com a seguinte pérola: “Todos os que estão nos mirando sabem que temos capacidade para bater duro, ou seja: melhor que nos deixem tranquilos!”.

A afronta, solenemente dirigida ao Peru, foi pronunciada durante um exercício militar combinado, de exército e força aérea, no deserto de Atacama. Nele, os generais chilenos levaram grupos de jornalistas para exibir suas frotas de caças-bombardeiros F-16 e de tanques Leopard alemães, adquiridos da OTAN.

Injuriado, poucos dias mais tarde, o comandante da força aérea do Peru, Carlos Samamé Quiñones, não deixou barato, replicando: “Pois bateremos duas vezes mais forte. Quem bater, levará em dobro. E se terei que sacrificar-me, me sacrificarei… porque eu não sou de correr da briga!”.

O que a imprensa chilena se esquiva em explorar é que, ao contrário da Marinha, que esboçara uma política de boa vizinhança com a arma congênere peruana, exército e aeronáutica do Chile não veem com bons olhos a garantia do presidente Piñera de que, seja qual for o veredicto de Haia, ele será respeitado.

Quando a poeira parecia ter baixado, em novembro de 2013, foi a vez do vice-almirante José Romero Aguirre, chefe do Estado Maior Conjunto das FFAA chilenas, de renovar as hostilidades. Em exacerbado discurso de posse, o oficial exortou a “pátria alistada”, advertindo: “Estamos às portas do veredicto de Haia, o que, obviamente, vai de mãos dadas com o alistamento geral de nossa pátria (…). Como disse o comandante (Hernán) Mardones, estamos listos! As Forças Armadas estão em condições de assumir e cumprir com as tarefas que se designem!”.

Misto de mensagem subliminar e ameaça, a frase “estamos listos” [prontos] advertiu a hipótese do enfrentamento militar, motivo pelo qual cabe a pergunta feita por um leitor da suposta falsa notícia sobre o aquartelamento: ”y si fuera cierto? pero como esa información es delicada, no tiene que salir a la luz y debe ser desmentida a cabalidad?”.

O estado de prontidão em ambos lados da fronteira chileno-peruana é peneira que o inclemente sol do Atacama não consegue tapar. Como advertia em 15/07/2013 o portal “El Mostrador”, do Chile, “de manera invisible los planes de contención y alistamiento militar tanto en Chile como en Perú se han puesto en marcha, aunque ningunos de los dos países lo reconozca e incluso lo pudieran negar. Diversos informes e incluso la propia prensa peruana han señalado que sigilosos movimientos de tropas a ambos lados de la frontera se han registrado de manera permanente desde finales del año pasado, con el fin de estar preparados para cualquier evento post La Haya”.

Corrida armamentista

Herança do pinochetismo, segundo os cálculos do Estado Maior chileno, o poderio militar do país andino deveria somar os efetivos de Peru, Bolívia e Argentina, juntos, países que conforme a conjuntura são definidos como adversários ou inimigos. É pedra de toque desse legado a lei que destina 10% dos lucros da mineração do cobre para financiar as FFAA. Mediante o subterfúgio o Chile gasta 3,3% do seu PIB em armas, o assombrador topo do ranking latino-americano, cuja média é de 1,5%.

Não cabe dúvida, que a disputa marítima com o Peru agravou a tendência, desatando uma corrida armamentista sem precedentes. Enquanto o Chile efetuou compras de última hora, o Peru gastou aprox. US$ 2,0 bilhões extras de seu orçamento militar com a aquisição de mísseis de médio alcance, armas anti-blindados, repotenciamento da aeronáutica com tecnologia russa e construção de 13 naves no estaleiro estatal SIMA.

Enquanto o Chile tenta padronizar seus equipamentos segundo o figurino da OTAN, o Peru seguindo a tradição iniciada durante o governo do Gal. Velasco Alvarado, prioriza sua cooperação com a Rússia, mas também diversifica seu armamento com fornecedores tão incomuns como a Daewoo da Coreia do Sul, com quem co-produz aviões da classe KT1 e realiza o upgrade de sua frota de submarinos, atualmente a mais numerosa da América Latina.

O Chile pós veredicto

A municipalidade de Tacna, no Peru, decretou feriado nacional o dia 23 de janeiro, mandando instalar telões de TV em vários pontos da cidade, para acompanhar ao vivo a cobertura ansiado veredicto de Haia.

Em trama paralela, no Chile, o deputado Jorge Tarud, membro da comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados e dirigente do PPD-Partido por la Democracia, da base de Michelle Bachelet, atiçou os ânimos nacionalistas, especulando que “seria gravíssimo” caso a resolução da Corte Internacional de Justiça contradiga a posição nacional. Afrontando abertamente a legitimidade da CIJ, o parlamentar advertiu para consequências graves “caso não se respeite os tratados vigentes”, propondo um plebiscito.

Não se sabe se Tarud se lembrava de uma pesquisa de opinião realizada em novembro de 2011 pela PUC do Chile, segundo a qual 73% dos consultados se opõem a concessões territoriais ao Peru; inclusive caso a CIJ legisle contra a frágil posição chilena.

O que Tarud não quer aceitar é que as sentenças da CIJ são inapeláveis, não cabendo qualquer recurso.

Com esta deformada percepção da realidade latino-americana, frequentemente instigada e manipulada por lideranças políticas irresponsáveis, pode até fazer-se política de Estado, mas Michelle Bachelet assume o governo chileno correndo o risco de ver gravemente comprometido seu projeto de integração latino-americana, caso não afine seus instrumentos de navegação.

Resta a lucidez dos cidadãos que, como Martín Esparza, questionaram em Cambio21: “Si el litigio no afecta la soberania de Chile en el mar en disputa ? quienes entonces estan detras de esta arremetida patriotica ? Las empresas pequeras? que han asolado la fauna? descubrieron petroleo en la zona? ? cual es la ganancia del ciudadano chileno comun y corriente?”

Fonte: jornalggn.com

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