De uma maneira ou de outra, a vida continua em Porto Príncipe…

CarolineTudo o que li nos livros, finalmente, tornou-se palpável graças ao apoio do Ministério da Defesa, da Força Aérea Brasileira e, especialmente, do Exército Brasileiro, por intermédio do seu Centro de Comunicação Social, o qual, desde o primeiro momento em que recebeu meu projeto de pesquisa, não mediu esforços para que ele fosse concretizado.

O preparo anterior foi fundamental para compreender o que eu vivenciei. Ainda assim, a realidade local é surpreendente. A primeira percepção que tive com a chegada a Porto Príncipe foi a do calor, que subia do asfalto quente do aeroporto, e a da cordial recepção do Batalhão Brasileiro, que nos esperava desembarcar.

O jeito brasileiro de fazer a paz é inerente ao nosso soldado e é aplicado no dia a dia. O respeito aos soldados brasileiros foi adquirido por esse jeito de ser, e não imposto pela força. Os cordiais “bom dia” e “boa tarde” distribuídos à população conquistam-na imperceptivelmente. Isso foi comprovado, no dia seguinte, quando saímos em visita à capital haitiana.

O trânsito intenso indica que a vida está voltando ao normal, ao menos em parte. As ruas mal estruturadas dão passagem ao grande número de carros, que transitam de um lado para o outro, sem muita organização. Alguns poucos semáforos parecem de pequeno interesse aos motoristas. Na área próxima à base do Exército Brasileiro, pude observar carros novos circulando e concessionárias famosas. Conforme nos distanciávamos dali, as ruas ficavam mais apertadas e os carros particulares davam lugar aos tap-taps, carros coloridos, que geralmente levam alguma inscrição religiosa e carregam incontáveis pessoas sem nenhuma segurança.

Os tap-taps são considerados táxis coletivos e a tarifa média paga é de 5 gourdes (moeda oficial do Haiti), mas o preço depende da distância a percorrer. É comumente usado pela população por ser um meio de transporte barato. Eu só conseguia imaginar o calor lá dentro.

O Haiti é o país mais pobre das Américas e está entre os mais pobres do mundo. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2009, realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Haiti ocupa a 149ª posição entre os 182 países analisados. Se não bastasse estar entre os piores índices de desenvolvimento humano, o país ainda está localizado na ilha Hispaniola, no centro do mar do Caribe, região climática mais instável do Oceano Atlântico.

Além da intensa exploração que o Haiti sofreu durante os anos de colonização francesa, o país ainda passou por uma intervenção americana, por uma ditadura ferrenha comandada pela família Duvalier e por seguidos governos depostos. O Haiti ainda foi arrebatado pelo furacão Hanna, em setembro de 2008, e pelo terremoto catastrófico em janeiro de 2010.

O terremoto, certamente, deu grande publicidade ao país e ao trabalho da Organização da Nações Unidas (ONU) no local, mas a ajuda ao país já estava em andamento desde 2004, com a chegada da MINUSTAH.

Após o advento do terremoto, a ajuda internacional marcou presença em uma escala nunca antes vista. Houve, inclusive, o perdão da dívida haitiana junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), calculada em US$ 268 milhões. Só o Brasil prometeu contribuir com US$ 172 milhões. A MINUSTAH ampliou seu efetivo para 8.603 soldados, 2.965 policiais, 473 funcionários civis internacionais, 1.235 funcionários civis locais e 193 voluntários da ONU.

Diante dos fatos apresentados, do número de mortos, feridos e desabrigados e da proporção da destruição, levanta-se a dúvida: um dia o Haiti irá se recuperar?

Ao seguir pelas ruas de Porto Príncipe, é impossível não reparar no comércio informal nas calçadas. Tudo se vende nas bancas improvisadas, desde alimentos e roupas até produtos de higiene pessoal. A falta de energia elétrica é a explicação para tal comércio, pois as lojas quentes e escuras não conseguem atrair as pessoas.

O comércio informal é fruto da precária estrutura estatal, que não consegue oferecer nem ao menos a distribuição de energia elétrica, e dessa forma será mantido, enquanto não houver controle fiscalizador do comércio, inclusive com a imposição de tributos, para que o Estado tenha capital e aparelhe-se melhor.

Dentre os itens vendidos no comércio local, o que me chamou mais a atenção foi a venda de carvão vegetal, que é utilizado para o preparo de alimentos. Cerca de 70% da população haitiana depende desse combustível para conseguir energia, tendo como consequência a devastação de 90% de suas florestas.

Ainda que tenhamos a consciência de que a utilização desse material seja prejudicial ao meio ambiente, é impossível exigir de um haitiano essa mesma conscientização, pois, para ele, o carvão vegetal é o único meio de produção de energia.

Junto com a falta de estrutura estatal, o meio ambiente sofre pela devastação descontrolada.

A água potável é outro ponto crítico em Porto Príncipe. A maior parte da população precisa ir aos postos de distribuição de água espalhados pela cidade. Há falta de água para tudo: para o consumo, para o banho, para a limpeza. Apenas 24% das pessoas na zona urbana têm distribuição de água em suas casas e apenas 3% na zona rural.

Os córregos e os rios da cidade estão completamente poluídos. Onde deveria haver um rio, o que se vê é um mar de garrafas plásticas boiando na superfície. Não há coleta de lixo suficiente, não há sistema de reciclagem. Há apenas o acúmulo desenfreado da sujeira.

Ao chegarmos à beira-mar, a brisa caribenha renovou-nos as energias. Entretanto a imagem da orla, infelizmente, não foi das mais belas. Lá também havia um mar de garrafas plásticas, anunciando as condições não recomendadas da água, enquanto que, ao fundo da paisagem, havia uma jangada e um jangadeiro a postos para mais um dia de pescaria, ignorando que talvez o peixe daquela baía não seja apropriado para o consumo humano.

Entre todas as dificuldades que o povo enfrenta, o acesso à água potável para o consumo é a mais dura. O consumo de água diário para cada cidadão haitiano não passa dos 10 litros, enquanto que, em outros países, chega a atingir os 220 litros.

As crianças são as que mais pedem água, e, sem dúvida, esse foi o momento mais difícil. Andar com uma garrafa de água é atrair todos os olhares para si. É sentir apertar o peito ao não poder entregar-lhes todas as garrafas que estavam no nosso ônibus.

Andar por Fort Dimanche e perceber a dimensão da pobreza e da falta de higiene foi surpreendente. O esgoto corre livremente, criando uma divisa natural entre a rua e o mercado de variedades. As verduras e as roupas empilhadas em grandes montes no chão são as atrações locais. Muitas dessas roupas, que agora estão entre as mercadorias comercializadas, foram doadas pela ONU ou pela comunidade internacional em geral, o que representa um grande descaso pela intenção dos doadores ou uma busca desesperada por dinheiro e comida. Enquanto isso, as crianças pequenas andam completamente nuas nas regiões mais carentes.

O cheiro desagradável de esgoto correndo a céu aberto é o ponto mais marcante de Fort Dimanche.

Ao chegarmos a Cité Soleil, transitamos, rapidamente, pela comunidade. Uma avalanche de crianças desnutridas e sorridentes disputam nossas mãos. Como desejei ter mãos suficientes para sentir o toque de cada uma.

As crianças não são só carentes de comida e água. São carentes de atenção. De qualquer forma, queriam comunicar–se comigo, queriam saber meu nome e dizer o delas. O problema de comunicação foi superado pela emoção e pelos gestos. As crianças estão acostumadas com as barreiras da língua e acabam conduzindo a conversa. Rapidamente, é possível saber o nome e a idade delas.

Aqueles minutos ali, em contato com aquelas pequenas fontes de esperança, transformaram minha vida. Como é possível ter tão pouco e oferecer tanto?

Quando fui avisada de que deveríamos seguir em frente, não olhei para trás. Apenas soltei as pequenas mãozinhas que me seguravam, implorando por comida, água, dinheiro e atenção. Eu seria incapaz de deixá-las se olhasse novamente nos seus olhos.

A única certeza que tive naquele momento é que podemos e devemos mudar o destino daquelas crianças. A esperança no Haiti deve ser depositada nelas. A educação é, sem dúvida, o primeiro passo. Elas precisam acreditar que podem viver outra realidade.

A falta de empregos, de fábricas, de agricultura e de turismo torna o povo haitiano indigente. Índices especulativos indicam que mais de 50% da força de trabalho não têm emprego formal. Esmolar virou um hábito.

De volta à base brasileira, o cenário voltava a ser o mesmo. Para onde olhávamos, era possível ver prédios que caíram, prédios que ainda não caíram e, inexplicavelmente, continuam de pé, abrigando alguns haitianos que preferem arriscar suas vidas por ali a ter que enfrentar as chuvas nas tendas distribuídas pela ajuda humanitária.

Interessante notar que os escombros chamavam a minha atenção, mas não mais a da população local. Eles caminham normalmente por entre as toneladas de entulho. Os cidadãos parecem ter se acostumado ao cenário!

De uma maneira ou de outra, a vida continua em Porto Príncipe…

FONTE: EBlog

Autora: Caroline Alves Salvador, Advogada, Mestre em Ciências jurídicas-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos.

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