Ultimato americano

John Kerry

Estados Unidos avisam à Rússia que tentativa de anexação da Crimeia representaria o fechamento da porta da diplomacia. Cidades do leste do país realizam protestos a favor do Kremlin. Monitores internacionais são recebidos à bala na península.

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, alertou ontem ao chanceler russo, Serguei Lavrov, para a derrocada da diplomacia entre Washington e Moscou, caso o Kremlin tome qualquer atitude para anexar a Crimeia.(o parlamento da península decidiu pela separação da Ucrânia).

Os moradores da região vão às urnas, em 16 de março, para opinar sobre a cisão. Em conversa por telefone, Kerry pediu “máxima moderação” ao governo do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que garantiu apoiar a vontade da população de tornar-se parte de seu país. As tensões separatistas ultrapassaram as fronteiras crimeanas e se estenderam pelo leste da Ucrânia.

Em Donetsk, reduto do líder ucraniano deposto Viktor Yanukovich, milhares de ativistas pró-Rússia ocuparam a praça principal. Os manifestantes gritaram o nome de Putin. No centro de Kharkiv, a segunda maior cidade do país e de inclinação russófona, mais de 4 mil pessoas ostentaram bandeiras russas e se concentraram diante de uma estátua de Lênin.

Pelo terceiro dia consecutivo, observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) foram impedidos de entrar na Crimeia. Testemunhas que viajavam no comboio relataram à emissora britânica BBC que homens armados dispararam vários tiros para alto, no momento em que os carros se aproximavam de um posto de controle tomado por forças russas. Os observadores abortaram a missão e se retiraram para a cidade de Kharkiv.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, debateu a situação na Ucrânia com os premiês David Cameron (Reino Unido) e Matteo Renzi (Itália) e com os colegas François Hollande (França), Dalia Grybauskaite (Lituânia), Andris Berzins (Letônia) e Hendrik Ilves (Estônia).

“O presidente reafirmou a determinação inabalável dos Estados Unidos para com os nossos compromissos de defesa coletiva, sob a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e o nosso apoio permanente pela segurança e pela democracia de nossos aliados bálticos”, declarou a Casa Branca. Depois do telefonema com Obama, Hollande disse que, diante “da falta de progresso” para uma solução da crise, França e Estados Unidos poderão adotar “novas medidas” contra o Kremlin.

O chanceler da Rússia pediu que a OSCE investigue as mortes, ocorridas no mês passado, de mais de 80 pessoas em Kiev, durante as manifestações que derrubaram Viktor Yanukovich. Nesta semana, a chefe de política externa da União Europeia (UE), Catherine Ashton, conversou por telefone com o ministro das Relações Exteriores da Estônia, Urmas Paet. O estoniano indicou que a oposição ucraniana estaria envolvida no banho de sangue. “Estamos abertos a um diálogo honesto, de igual para igual e objetivo com os nossos parceiros internacionais, para encontrar uma maneira de ajudar toda a Ucrânia a sair da crise”, afirmou o chefe da diplomacia russa, em referência ao Ocidente.

Morador de Kiev, o ativista Anton Mudrak afirmou ao Correio duvidar do envolvimento da oposição nas mortes ocorridas na Praça da Independência. “Vitali Klitschko (líder opositor) jamais deixaria isso acontecer. Eu não excluo tal possibilidade, mas não creio que eles tenham feito isso”, comentou, pela internet.

Líder do movimento paramilitar ucraniano Pravy Sektor (de extrema-direita), Dimitro Yarosh, de 42 anos, declarou que será candidato à presidência nas eleições antecipadas ucranianas, em 25 de maio. Ele também afirmou que, por enquanto, não tem a intenção de enviar militantes para combaterem na Crimeia. Vestido de terno e gravata e cercado por guarda-costas, durante uma entrevista em Kiev, ele lançou sua candidatura: “Eu participarei nas eleições presidenciais”.

A ex-primeira-ministra ucraniana Yulia Timoshenko chegou a Berlim para tratar-se de uma hérnia de disco. Kar Max Einhäupl, diretor do Hospital de Caridade onde ela ficará internada,  afirmou não ser possível prever em quanto tempo a opositora ucraniana estará recuperada. “Temos confiança de que ela poderá voltar a andar livremente”, disse Einhäupl.

Avião alvejado

A guarda de fronteira da Ucrânia informou que um avião de patrulha das divisas do país foi alvejado ao sobrevoar uma área perto da Crimeia. Ninguém ficou ferido quando homens abriram fogo contra a aeronave, que levava três tripulantes.

Em meio à guerra diplomática e à retórica bélica, um novo componente preocupa Kiev. O potente vírus Snake tem infestado os computadores da Ucrânia desde o início da crise, informou o BAE Systems — organismo especializado em ciberespionagem. A Rússia seria o país de onde partem os ataques, já que o vírus opera no fuso horário de Moscou e em seu código aparece um texto em russo.

“O Snake é uma das ameaças mais sofisticadas e persistentes que temos estudado”, explicou a BAE Systems. Dos 44 casos de infecção já detectados, 22 ocorreram na Ucrânia.

Depoimento

“Todos os soldados estão sem insígnia, mas eles admitem que são russos. Além disso, carregam as armas russas mais recentes, equipamento militar indisponível em outras partes do mundo. Alguns veículos militares têm placas da Rússia, outros não. Os soldados bloqueiam as unidades militares ucranianas. Uma tempestade ameaçadora mudou-se para a Crimeia. Não houve, no entanto, nenhuma retirada em massa de moradores. O que existe é uma tensão na sociedade. As pessoas estão preocupadas e temerosas. Hoje, em muitas cidades da Crimeia, manifestações foram realizadas em apoio aos militares ucranianos e pela unificação do país. Antes da chegada dos soldados russos, a vida na península era pacífica. Os moradores estão com medo. A sociedade se dividiu. Alguns se perguntam como será a Crimeia se anexada à Rússia, já que está 100% conectada à economia da Ucrânia.”

Três perguntas para Alexey Kuznetsov, chefe do Centro para Estudos Europeus do Instituto de Economia Mundial e de Relações Internacionais da Academia Russa de Ciências

– De acordo com o primeiro-ministro interino, Arseniy Yatsenyuk, o referendo na Crimeia não será reconhecido. O senhor acredita que existe o risco de uma guerra separatista na região?

Yatsenyuk não é um primeiro-ministro legítimo. Como você sabe, um golpe de Estado ocorreu em Kiev. Foi apoiado pela União Europeia (UE). Moradores de várias regiões da Ucrânia ainda protestam contra o novo premiê. O grupo mais perigoso na derrubada de Viktor Yanukovich (ex-presidente) está associado aos neonazistas. Logo, faz sentido discutir a reação política deles e de aliados contrária ao livre arbítrio das pessoas na Crimeia? Quanto a uma possível agressão militar dos neonazistas ou da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) a cidadãos da península, creio ser melhor perguntar a eles.

– A Ucrânia acusa a Rússia de aumentar o contingente para 30 mil soldados na Crimeia. Como vê esse reforço?

A informação sobre milhares de soldados russos na Crimeia é uma falsa propaganda dos ucranianos. Você realmente acredita que as pessoas da Crimeia não querem fazer parte da Federação Russa? A Crimeia é uma antiga posse da Rússia. No período soviético totalitário, houve, de fato, uma anexação da região pela Ucrânia. A Crimeia tornou-se parte do país em 1954. No entanto, a maioria da população é russa. Após a separação da União Soviética, o Kremlin tentou encontrar formas pacíficas para a solução deste problema. A federalização da Ucrânia foi a melhor opção. Infelizmente, os direitos das minorias étnicas estão excluídos da agenda da UE, e o bloco dita os “valores” para a Ucrânia.

– Qual a probabilidade de uma solução diplomática neste momento?

Primeiramente, precisamos legitimar as novas autoridades ucranianas e isolar os neonazistas em todas as regiões da Ucrânia. Para a Crimeia, é fato que o referendo vai ocorrer em 16 de março. Se os EUA ou a UE realmente quiserem a estabilidade da democracia na Ucrânia, deveriam enviar observadores e respeitar o resultado do referendo. Caso contrário, para a Crimeia, o golpe de Estado em Kiev será mais verdadeiro ainda.

FONTE: Correio Braziliense – Lucas Fadul – Rodrigo Craveiro

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