Força Expedicionária Brasileira: esquecidos no Brasil, heróis na Itália!

Por Rafael dos Santos Rodrigues

Fazia frio em Pistóia na manhã de 28 de abril de 2016. Acordamos cedo, pulamos para o carro alugado em Roma dias antes e tocamos para o monumento Votivo. O encontro estava combinado com o Mário Pereira havia meses. Começava ali o que seriam os três dias mais intensos de nossas vidas.

Monumento Votivo

Tanto eu como minha esposa Juliana, somos descendentes diretos de febianos, meu pai, Lourival Rodrigues era do 1º RoAuR, o avô de Juliana, Hélio Padilha, era 3º Sargento de Telecomunicações do Regimento Sampaio. Crescemos ouvindo histórias sobre a campanha da FEB e sobre o dia-a-dia de dois daqueles 25 mil homens que foram para longe de casa por um motivo inicial não tão nobre (o “acordo” de Vargas com os EUA), mas que ao colocarem os pés em solo italiano, alheios aos motivos que os jogaram lá, assumiram a verdadeira tarefa de fazer parte das forças que livraram o mundo das trevas do nazismo e encarnaram o papel de libertadores para inúmeras cidades e vilarejos da região.



Seguimos o GPS (recurso que seria considerado bruxaria em 1944) por ruas que ainda estavam vazias no curto trajeto de três quilômetros até o local, no pé do monte Santomoro. Na Via delle Sei Arcole, encontramos a entrada para o monumento.

Ninguém no belo jardim que adorna o pináculo central. Entramos, lemos as inúmeras placas comemorativas espalhadas pelo gramado, e fizemos um breve momento de silêncio diante da chama permanente.

Passaram-se quase que instantaneamente uns 20 minutos até que Mário aparece, vindo de uma espécie de escritório que fica na lateral do jardim que não houvera sido percebido por nós. Ele pergunta se nós somos nós, respondemos que sim e perguntamos se ele era ele.

Entramos na pequena casa. Mário é simplesmente magnífico, filho de Miguel Pereira, pracinha que optou por ficar em terras italianas, é uma andorinha que sozinho procura fazer o verão que é manter viva a memória da FEB. Mário representa incansavelmente a história febiana no circuito cultural da região, apesar da indigência com a qual TODOS os governos desde 1945 trataram a FEB.

Antes de sairmos do Brasil, imprimimos inúmeras fotografias e registros feitos por Lourival e Hélio, uma delas na companhia de partisans.

Fizemos 3 envelopes com as cópias. Um para o Mário, outro para o Museu Iola de Montese e um terceiro de backup. Mário recebeu muito bem o material e de pronto reconheceu paisagens, uniformes, nuances que para nós passaram despercebidas por 70 anos. Reparou que a fivela do cinto do meu pai era fora do padrão do uniforme, sendo semelhante à usada pelos partisans. Reparou também que o 3ºSGT Hélio estava na companhia de partisans, cujos registros fotográficos são considerados raros. Eles eram a “aliança rebelde” em uma Itália ocupada por nazistas em todo canto.

Quando soube que meu pai guiava a artilharia de 105mm, foi até um armário e me entregou um estilhaço:

– Este é um estilhaço de obus de 105mm. Recolhemos em uma visita a Monte Castello. Seu pai esteve lá. Quem sabe este tiro não pode ter sido guiado por ele?

Esse seria um dos inúmeros momentos que nos marcaram naquela breve caminhada da pelos passos da FEB entre Florença e Bolonha.

O Mário editou um livro de fotos que serve para ajudar na manutenção do monumento. Evidente que alguns exemplares voltaram conosco a título de souvenir.

Depois do encontro, tiramos uma foto com o Mário e seguimos para Porretta Terme. Foi em Porretta que Mascarenhas de Moraes fixou o QG da nossa 1ª DIE (Divisão de Infantaria do Exército). Estacionamos em um supermercado, compramos água e seguimos para um longo passeio à pé. O lugarejo é lindo e a praça central tem um grande monumento em tributo ao Giorno della Liberazione, que é comemorado em 25 de abril e marca o fim da ocupação nazista. Neste monumento tem uma placa em homenagem à FEB.

Seguimos nos esgueirando pelas ruas, saindo da praça (Piazza dela Libertá) e subimos pela via Giacomo Matteotti. No fim da rua, um prédio amarelo. Ali, junto com o Hotel Roma, localizado na praça, foram os QGs usados pela FEB em Porretta Terme.

O primeiro QG foi o Hotel Roma, mas quando uma bomba explodiu na praça em frente, isso convenceu Mascarenhas a mover o escritório para um local mais retirado.

       

Voltamos para a estrada e começamos a subir por um tortuoso caminho através dos Apeninos Setentrionais. O relevo acidentadíssimo mostra bem o quão difícil foi o avanço da FEB (junto com a 10ª Cia de Montanha americana). Paralelamente, o relevo demonstra a comodidade da defesa alemã nos topos das montanhas, formada por um conjunto de fortificações e casamatas elevadas conhecidos como linha gótica. O posicionamento de fortificações nos cumes ao longo do caminho tornou a campanha dos Apeninos uma das mais complicadas do teatro de operações europeu. No momento da queda de Berlim, o front italiano era o ponto ainda de menor penetração dos aliados. A dificuldade que Aníbal teve ao guiar os elefantes cartagineses por entre as montanhas italianas se repetia então, mais de 2 mil anos depois.

Saímos da strada Statale Porrettana para pegar a via Bombiana. Perto de Guanella, descortina-se o mais belo monumento que vimos.

 

Projetado pela brasileira Mary Vieira em 1994 e erguido em 2001, o Monumento Ai Cadutti Brasiliani é composto por dois arcos de granito branco com 15 metros de diâmetro cada. Os arcos repousam sobre uma enorme cruz de mármore negro com 24 metros de comprimento. A escultura, nomeada “Liberazione: monovolume a ritmo aperto”, destaca-se na paisagem rural da região. Por uma coincidência botânica, todo o capim disposto no entorno do monumento estava florido, dando um belo efeito.

A última linha da placa de mármore que marca o monumento diz: “em memória dos heróis brasileiros de Monte Castello”

Mais um breve momento de introspecção e seguimos em direção à Gaggio Montano. Lá visitamos o obelisco erigido em homenagem ao Brasil. Um globo com os dizeres “ordem e progresso” adorna uma torre de pedra onde se lê em uma das placas:

“Al comune di Gaggio Montano in memoria di quanti sacrificarono la vita
per riportare la libertà e la democrazia in Italia”
A comunidade de Gaggio Montano, em memória dos que sacrificaram a vida
para trazer a liberdade e democracia à Itália”

Como vimos ao longo do planejamento da viagem, não são poucas as homenagens à FEB em território italiano. Todos os monumentos e placas foram meticulosamente fotografados e plotados em GPS pelo incansável Mário Pereira.

Voltando à estrada, paramos em frente a uma casa em Bombiana. Na fachada de pedra, duas placas em homenagem à Frei Orlando.

Homenagem ao serviço religioso e principalmente, à abertura do atendimento médico militar aos civis (predominantemente crianças), que sofriam enormes privações, fome e doenças, decorrentes de um conflito que àquele momento já durava quatro anos.

Em Sassuolo, paramos em uma rotatória onde, no centro de seu gramado, há um grande monólito de granito. Nele, em baixo relevo, pode-se ler:

“Eterna Gloria al marechal Mascarenhas de Moraes e a glieroi della FEB venuti dal Brasil en el nome della libertá e della pace”

“Eterna glória ao Marechal Mascarenhas de Moraes e aos heróis da FEB vindos do Brasil em nome da liberdade e da paz”

Em Zocca, outra placa em outra praça dizia o seguinte:

“Na conflagração que chegou à II guerra mundial, a FEB se consagrou vitoriosa não só pela preservação da honra e dignidade nacional, mas também na defesa da solidariedade humano e no restabelecimento da confiança e respeito entre os povos”

No último dia desse passeio pelos caminhos da FEB, chegamos à Montese. Enquanto Mário nos deu o norte histórico e os inúmeros monumentos no caminho deram a noção do reconhecimento, Montese nos ensinou o significado da palavra gratidão.

Também com a ajuda da Internet e com antecedência, combinamos uma visita ao grupo de estudos Il Trebbo, que mantém um museu sobre segunda guerra, Museo Iola di Montese.

       

Dia nublado, termômetro girando em torno de 5 graus. Quente perto das inúmeras nevascas enfrentadas pelos nossos “velhos” 72 anos antes.

Danielle Bernardi nos recebe e abre o museu para nossa visita. Um acervo riquíssimo, uniformes completos e conservados de médicos, enfermeiras, paraquedistas e infantaria. Inúmeras lurdinhas (metralhadora MG42), antes temidas, jaziam silenciosas sem fazer o som de “máquina de costura” que lhe resultou a alcunha.

          

       

Danielle é neto de uma sobrevivente. Ele também editou um livro, em italiano, sobre o conflito. Ele se considera grato ao Brasil pela libertação de sua cidade e principalmente, por termos alimentado sua mãe, ainda criança, conforme falou sua avó em depoimento para o livro. São inúmeros os relatos de brasileiros que dividiam sua ração (que meu pai chamava de scatoleta) com os civis.

       

A propósito, sempre que meu pai via a guerra retratada no cinema de forma hollywoodiana, fazia questão de frisar:

“Uma guerra é muito triste. É difícil para nós. Mais ainda para os civis. Para crianças então, é um sofrimento inimaginável”.

Entregamos nossos “presentes” e recebemos em troca cápsulas deflagradas e sachês de chá da ração de campanha. Pequenos presentes que têm agora grande valor sentimental.

Ao receber as fotos, os olhos de Danielle se acenderam ao ver uma das imagens do avô de Juliana: Ao seu lado haviam 2 partisans e 1 soldado sul africano.

– Puxa! Temos pouquíssimos registros dos partisans, e essa fotografia tem grande importância para nós. Muito obrigado!

Depois da visita ao museu, caminhamos aproximadamente 1 km em uma trilha morro acima que sai de trás do prédio e vai em direção ao topo da formação. Ao término da trilha, com visão privilegiada de todo o terreno do entorno, uma sequência de trincheiras da linha gótica alemã.

Mais uma vez, experiência ímpar. Da mesma forma que ao visitar o Foro Romano podemos vislumbrar a história universal in loco. Entrar em uma trincheira daquelas nos faz revisitar nossa história. Ali estiveram, em um primeiro momento, tropas que nos combateram, que contribuíram para as 470 baixas da 1ª DIE. Em um segundo momento, os mesmos abrigos foram usados por nós, à medida que avançávamos.

          

O dia vai terminando e vamos visitar agora o Largo Brasile em Montese. Uma bela escultura de pedra, com ares de Guernica, serve de marco e reconhecimento à liberdade que levamos àquelas terras. Mais algumas placas de agradecimento e gratidão:

“A perene memoria dei soldati della forza dispedizione brasiliana cheil 14 aprile 1945 liberarono montese”

Detalhe para a sede da Comuna de Montese (o equivalente italiano de uma prefeitura): Sua entrada tem três bandeiras hasteadas: A bandeira da Itália, a da União Europeia e a do Brasil.

Faz parte do ensino escolar para as crianças montesinas a história da FEB, e é possível encontrar na Internet os pequenos cantando a Canção do Expedicionário em datas comemorativas (trecho):

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do Engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais,
Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Do pampa, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal.
Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;

A fome chegando e resolvemos parar para almoçar, afinal já eram quase 17h e o termômetro se aproximava de zero, agravado por uma insistente garoa. Na Piazza Repubblica, entramos no Miramonti, infelizmente já fechado. Nos desculpamos com a simpática senhora cujo nome infelizmente olvidamos perguntar. No diálogo, ao saber que éramos brasiliani, fez questão de reabrir o restaurante apenas para nos atender. Fomos clientes VIP, com atendimento exclusivo: entrada, pasta e um delicioso café:

Andar pela região foi uma experiência ímpar, que recomendamos efusivamente a todos que visitarem o país da bota. O cuidado e respeito com a própria história é algo que ainda não temos, mas nunca é tarde para aprendermos.



Sair da versão mobile