Arábia Saudita usa bombas de fragmentação brasileiras no Iêmen

unnamed (2)

Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel

As forças da coalizão liderada pelos Arábia Saudita parecem ter usado uma variante brasileira de munição de fragmentação, proibida internacionalmente, sobre um bairro residencial em Ahma em Sa’da, norte do Iêmen, nesta semana, ferindo pelo menos quatro pessoas e deixando perigosas submunições não detonadas espalhadas pelo chão ao redor, declarou a Anistia Internacional na sexta, 30 de outubro.

A organização entrevistou vários residentes locais, incluindo duas vítimas, o contingente médico que deles tratou, uma testemunha ocular e um ativista local que visitou o lugar do ataque logo após sua ocorrência. Fragmentos não detonados registrados no local do ataque são semelhantes às bombas de fragmentação fabricadas no Brasil. A Arábia Saudita é conhecida por tê-las usado no passado.

“Pelo fato de que os projetis de fragmentação constituem inerentemente arma de ação indiscriminada, sua utilização é proibida pelo direito consuetudinário humanitário internacional. Com efeito, cerca de 100 Estados já proibiram totalmente a sua produção, armazenamento, transferência e utilização, em reconhecimento aos danos únicos e duradouros que produzem”, disse Philip Luther, Director do Programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e África do Norte.

Além de matar e ferir civis por ocasião do seu emprego imediato, muitas submunições não explodem no momento do impacto e continuam a representar risco para a vida de qualquer pessoa que entre em contato com elas mesmo depois de anos. E preciso que a coalizão liderada pela Arábia Saudita cesse de imediato a sua utilização e todos as partes se comprometam publicamente a não mais fazer uso de munição de fragmentação, além de concordarem em aderir à Convenção Global sobre Munição de Fragmentação.

Testemunhos oculares

O ataque foi realizado por volta do meio-dia em 27 de outubro de 2015, em uma área residencial de Ahma, cerca de 10 km ao noroeste de al-Talh, na província de Sahar, próximo à cidade de Sa’da. Ahma está aproximadamente a 40 quilômetros ao sul da fronteira com a Arábia Saudita.

Um ativista local que visitou o lugar algumas horas após o ataque encontrou três submunições não detonadas num raio de cerca de 20m, uma na área de uma fazenda local, outra perto de uma estufa e a terceira ao lado de uma mesquita. O objetivo militar mais próximo conhecido pela Anistia Internacional é um mercado em al-Talh, aproximadamente 10 quilômetros ao sudeste, conhecido pela venda de armas, e que foi alvo de ataques aéreos em pelo menos cinco ocasiões diferentes, desde que a Arábia Saudita começou a campanha de bombardeios em março.

Testemunhas descreveram que, agora, apesar da completa ausência de aeronaves militares, uma série de foguetes cortou o céu e explodiu no ar, seguida por dezenas de explosões sobre o solo. Esses relatos, além dos restos encontrados no chão são consistentes com as características das bombas de fragmentação disparadas por meio de vetores superfície-superfície, usando um sistema de lançamento múltiplo (MLRS).

Salah al-Zar’a, um fazendeiro local de 35 anos, estava na estrada principal, a 50m de distância, quando o ataque ocorreu: “Eu estava na minha moto, indo na direção de Dhahyan com outro amigo, quando eu vi … quatro mísseis caindo … cada um seguiu em uma direção diferente com dois minutos entre cada míssil. Houve quatro explosões no céu, e depois mais 50 explosões quando caíram no chão. Elas caíram sobre um grupo de 30 casas e lojas”.

Saleh al-Mu’awadh, um fazendeiro com 10 filhos e 48 anos de idade, falou com a Anistia Internacional por telefone, da sua cama do hospital de al-Jamhouri na cidade de Sa’da: “Eu estava passando na minha moto na estrada principal, próximo ao local do ataque, quando tudo que senti foram estilhaços. O impacto do ataque afetou plantações a alguns quilómetros de distância do local”.

Ferimentos causados por estilhaços

De acordo com a equipe médica que atendeu os pacientes, um dos feridos, Abdelaziz Abd Rabbu, um homem de 25 anos, está em um estado crítico, com ferimentos no abdômen e no peito produzidos por estilhaços.

Abdelbari Hussein, de 22 anos, outro civil ferido no ataque, comentou à Anistia Internacional: “Eu estava sentado na minha loja quando o ataque aconteceu. Eu não ouvi avião nenhum, tudo o que eu ouvi foi a explosão”. Ele sofreu ferimentos no abdômen produzidos por estilhaços.

Ainda que o ataque possa ter atingido os Huthi e outros grupos armados que estivessem em meio à população civil, o uso de armas de ação indiscriminada, como as bombas de fragmentação é absolutamente contrário ao direito internacional humanitário e qualquer utilização de bombas de fragmentação constitui uma violação a essas normas.

Bombas de fragmentação proibidas

Bombas e munições de fragmentação contêm de dezenas a centenas de submunições, que são liberadas no ar e se espalham indiscriminadamente sobre uma grande área de várias centenas de metros quadrados. Eles podem ser lançadas de aviões ou, como neste caso, a partir de foguetes superfície-superfície.

Bombas de fragmentação também têm uma alta taxa de insucesso ― ou seja, uma alta porcentagem delas não explodem no momento do impacto, tornando-se na prática minas terrestres que representam uma ameaça para os civis durante anos após seu lançamento. O uso, a produção, venda e transferência de munições de fragmentação é proibida nos termos da Convenção de 2008 sobre as Munições de Fragmentação, que tem quase 100 Estados Partes.

Apesar de o Brasil, o Iêmen, a Arábia Saudita, bem como os demais membros da coalizão liderada por esta última, e que participam no conflito no Iêmen, não serem partes na Convenção, nos termos das regras do direito consuetudinário humanitário internacional, eles não devem usar armas de ação indiscriminadas, que invariavelmente representam uma ameaça aos civis.

O sistema brasileiro ASTROS II

A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Munition Coalition Cluster documentaram, até a presente data, o uso de quatro tipos de bombas de fragmentação por parte da coalizão liderada pela Arábia Saudita no conflito do Iêmen, incluindo três variantes fabricadas nos EUA.

Esta agora, no entanto, é a primeira suspeita de uso no conflito de munição de fragmentação de fabricação brasileira.

Várias empresas brasileiras produzem bombas de fragmentação. Embora a Anistia Internacional não tenha sido capaz de verificar de forma independente e com absoluta certeza a marca e o modelo das submunições lançadas sobre Ahma, elas se assemelham a um modelo fabricado pela empresa brasileira Avibrás Indústria Aeroespacial SA.

O ASTROS II é um sistema operado por caminhões de lançadores múltiplos (MLRS) fabricados pela Avibrás. ASTROS II pode disparar vários foguetes em rápida sucessão, e três de seus foguetes podem ser equipado com até 65 submunições, com um alcance de até 80 km, dependendo do tipo de foguete. O site da empresa descreve como “capaz de lançar mísseis de longo alcance, projetado como um sistema de armas estratégicas com grande poder de dissuasão”.

De acordo com o Landmine and Cluster Munition Monitor, a Avibrás vendeu esse tipo de armamento para a Arábia Saudita no passado, e a Human Rights Watch documentou a sua utilização pelas forças da Arábia Saudita em Khafji em 1991, “deixando para trás um número significativo de submunições não detonadas”.

“O Brasil precisa imediatamente tornar-se transparente na extensão de suas transferências internacionais de munições de fragmentação proibidas, que remontam há décadas. O Brasil e outros países que continuam permitindo a produção e transferência dessas armas não podem alegar ignorância quanto ao preço que estão impondo sobre os civis no Iêmen e em outros lugares. O Brasil deve parar imediatamente a produção, destruir seus estoques e aderir à Convenção sobre Munições de Fragmentação, sem demora”, disse Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil.

A Anistia Internacional entrou em contato com um executivo sênior da Avibrás, que viu hoje [30 de outubro] as imagens feitas no Iêmen. Ele disse que a forma “se assemelha” ao projeto AVIBRAS e não descartou que seria dela, mas disse que essa probabilidade era baixa por conta do calibre da munição. No entanto, admitiu que a empresa fabricou calibres semelhantes no início dos anos 90, e disse que iria investigar mais.

FONTE: Blog do Nassif

Sair da versão mobile