Argentina estava dez anos à frente na questão nuclear, diz ex-presidente

Presidente José sarney - FOTO: Antonio Cruz
Presidente José Sarney – FOTO: Antonio Cruz/ABr

Por Isabel Fleck

Sarney afirma ter visto vantagem do vizinho ao conhecer central nuclear de Pilcaniyeu, em 87. Governo do Brasil resistia a fazer acordo de inspeções mútuas; Sarney nega ter sofrido pressão de militares

Ao chegar à usina de Pilcaniyeu, próxima a Bariloche, em julho de 1987, o então presidente José Sarney (1985-1990) se deparou com uma estrutura que surpreendeu os técnicos brasileiros que o acompanhavam.

“O presidente [Raúl] Alfonsín abriu a usina para que soubéssemos até que ponto eles tinham avançado e descobrimos então que eles estavam dez anos na nossa frente”, disse Sarney à Folha. O convite para a visita de Sarney a uma instalação “ultrassecreta” já fazia parte da tentativa de Alfonsín de emplacar um acordo de inspeções nucleares mútuas, do qual o Brasil vinha se esquivando.

Um documento da Chancelaria argentina de maio de 1985 orienta o então chanceler argentino, Dante Caputo, a oferecer ao colega brasileiro, Olavo Setúbal, em reunião na semana seguinte “um regime de controles mútuos sobre o uso exclusivamente pacífico de materiais, equipamentos e instalações nucleares”.

A proposta argentina –revela um telegrama de 1977 do então vice-presidente Adalberto Pereira dos Santos ao general Ernesto Geisel– seria um eco do que fora sugerido naquele ano aos dois países pelo deputado americano democrata Robert Findley, sem, segundo o legislador, orientação do governo dos EUA.

Em novembro de 1985, antes de reunião dos presidentes em Foz do Iguaçu, um documento do Departamento de Energia e Recursos Minerais do Itamaraty diz que o governo brasileiro deveria responder à tentativa argentina de pressionar por um plano de inspeções com uma proposta de um “grupo de trabalho”.

“Um grupo de trabalho específico poderia contrabalançar alguma sugestão mais objetiva do lado argentino, que se deseje evitar por inoportuna”, diz o texto.

Sarney nega que a resistência sobre as inspeções tenha sido motivada para atender a grupos de militares que não gostavam da aproximação dos dois países no tema. “Foi uma estratégia para não termos que confessar aos argentinos que estávamos bastante atrasados em relação a eles”, diz.

As inspeções seriam autorizadas em 1991, no governo Collor, com a criação da Abacc (agência bilateral de controle de materiais nucleares). Após constatar o “atraso” brasileiro na usina argentina, Sarney enviou, em 1987, o assessor especial da Presidência, Rubens Ricupero, a Buenos Aires, para anunciar a Alfonsín que o Brasil tinha conseguido também enriquecer urânio.

Foi mais uma demonstração do misto de afirmação e tentativa de aproximação que marcou os dois governos na questão nuclear. “O anúncio brasileiro ajudava a dizer: ‘Bem, agora que estamos parelhos, vamos esquecer isso!'”, afirma Ricupero.

“Foi uma aposta arriscada”, diz Matias Spektor, professor da FGV. “Os dois presidentes compraram briga com seus militares e decidiram aumentar a transparência de seus programas sem ter certeza do que o outro estava fazendo.”

FONTE: Folha de São Paulo

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