“O Pai das Marinhas Nucleares”

“Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,
As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade
O miserável refugo das suas costas apinhadas.
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,
Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.”

(Poema de Emma Lazarus, gravado na base da Estátua da Liberdade, NY)

Por CC Robinson Farinazzo Casal

O século XX foi pródigo em lideranças de destaque para a Marinha Norte Americana (United States Navy), aquinhoada por vultos do porte de Chester W. Nimitz, Raymond Spruance, Marc Mitscher e Elmo Zumwalt, dentre tantos. Mas não se pode deixar de mencionar aquele que seguramente foi, de todos, o mais longevo (permaneceu 63 anos na ativa do Serviço Naval ) e talvez o mais polêmico: o Almirante de Esquadra Hyman George Rickover. Rickover, o menino polonês pobre que, desprezado em Annapolis por suas origens humildes, chegou ao posto mais alto da US Navy. O excêntrico gerente de reatores nucleares que foi mantido no cargo por 7 presidentes dos Estados Unidos, graças a seu inexcedível senso de responsabilidade.

O homem que deixou para a Marinha um legado mais de 200 submarinos nucleares e 23 porta aviões de propulsão atômica, constituindo a mais poderosa máquina de guerra da história da humanidade. Mas que também publicou ensaios maravilhosos sobre a necessidade de aprimorar a educação escolar dos jovens nos EUA. Uma força da natureza, de personalidade tão complexa e fantástica que poderia facilmente se transformar num roteiro de filme de Steven Spielberg. Esta é a sua história, que se confunde com o empreendimento nuclear dos Estados Unidos. E é, em síntese, a própria personificação do sonho americano.

Rickover nasceu no inverno de 1900 (27 de janeiro) na aldeia polonesa de Maków- Mazowiecki, que naquela época fazia parte do império russo. Seu nome de batismo era Chaim (a palavra mais importante do idioma hebraico, pois significa vida), mais tarde sendo americanizado para Hyman. O pai Abraham, um humilde alfaiate emigrou da Polônia para os EUA para fugir dos *pogroms que massacravam os judeus nas aldeias polonesas. Décadas depois, toda a população judaica remanescente de Maków- Mazowiecki seria dizimada no holocausto de Adolf Hitler.

Pallbearers que transportam as vítimas do pogrom de Kielce, transportam os caixões de caminhões para o local do enterro no cemitério judaico, julho de 1946. Cortesia da USHMM e Leah Lahav.

Em 1906 ele trouxe o resto da família, e foram morar , a princípio na parte pobre de Manhattan, e depois em Chicago. Aos nove anos, Hyman teve o seu primeiro emprego, onde exercia a tarefa de iluminar um operador de máquinas à noite , com o salário de 3 cents por hora. Depois, passou a serviços gerais de uma mercearia, e em seguida a entregador de telegramas da Western Union aos 17 anos de idade (apesar do emprego ser de tempo integral, ele conseguiu concluir seus estudos). A maneira dedicada e diligente como o jovem Rickover exercia suas modestas funções não passou despercebida por outro imigrante do leste europeu que já havia feito a América: o deputado federal de origem tcheca Adolph J. Sabath.

Para um jovem que desejasse ingressar nalguma das academias militares dos EUA no início do século XX não bastava passar no dificílimo exame de seleção: ele também teria que apresentar uma carta de recomendações assinada por um congressista. Sabath assinou a carta e Rickover passou nas provas para a Academia Naval de Annapolis, formando-se em 1922. De sua turma fazia parte o futuro Almirante William S. Parsons, o homem que acionaria a espoleta da bomba atômica sobre Hiroshima 23 anos depois.

A vida do jovem Rickover não foi confortável em Annapolis: imigrante de origem muito pobre, era continuamente desprezado por seus colegas. Ademais, era um dos únicos judeus de sua turma, uma minoria muito hostilizada naquele meio WASP na primeira metade do século. Estes preconceitos iriam marcá-lo profundamente por toda a vida, pois ele sabia que deveria sempre ter uma conduta impecável e uma vida imaculada para não dar combustível às críticas. Uma vez formado, começou sua carreira como oficial de máquinas no USS La Vallette e depois no USS Nevada , onde impressionou seu comandante por trabalhar duro e de maneira eficiente. Aperfeiçoou-se em engenharia elétrica pela escola de pós-graduação da Marinha, estagiando depois na Universidade de Columbia. Candidatou-se ao serviço de submarinos, mas devido a idade (29 anos à época) foi reprovado.

Por uma destas coincidências do destino, no mesmo prédio onde isto ocorreu, encontrou seu antigo comandante no Nevada, o qual interferiu a favor dele. Até 1933, Hyman serviu nos submarinos S-9 e S-48. Nesta época, a sua tradução de um manual alemão da Primeira Guerra Mundial se tornaria texto referencia para os submarinistas dos EUA. Logo após, comandou um navio varredor. Quando do ataque japonês a Pearl Harbour, Rickover servia na sub-chefia do Departamento Elétrico da Diretoria de Engenharia da US Navy. Irrequieto, voou para o Havaí, onde chefiou o reparo da rede elétrica do USS California.

Durante boa parte da Segunda Guerra Mundial, embora ansiasse por um comando no mar, serviu como capitão de mar e guerra no Departamento Elétrico da Diretoria de Navios, onde foi agraciado com a Legião do Mérito. Foram estes anos que lhe renderam vasta experiência na administração de grandes projetos, na seleção de pessoal adequado e no trato com a industria civil.

Também lhe renderam os primeiros inimigos, e não seriam os últimos… Em 1946, percebendo o potencial que a energia nuclear teria no futuro das marinhas, Rickover voluntariou-se ao projeto de reatores para propulsão de navios da US Navy. Seu começo não foi muito promissor; discordando de alguns chefes, foi deixado ao ostracismo numa pequena saleta, sem funções. Rickover lutou por suas convicções até conseguir uma audiência com o Comandante de Operações Navais na época, Almirante Nimitz, vencedor da Guerra no Pacífico.

Foi então comissionado na Divisão de Reatores Atômicos da Comissão de Energia Nuclear, cumulativamente com o de coordenador do Projeto de Reatores para a Marinha. Ambas indicações não foram por acaso: seus superiores queriam no cargo alguém com a garra e a determinação de levar até o fim a construção de um submarino de propulsão nuclear. Vamos recordar que, não obstante a vontade política de construir estes barcos, em termos de engenharia a tarefa era um mergulho no escuro, de vez que:

– No início dos anos 50, um reator nuclear tinha quase o tamanho de um quarteirão. A Marinha deveria miniaturiza-lo de maneira a caber dentro de um submarino. E com segurança;

– Não haviam dados de avaliação e certificação para os materiais que deveriam resistir simultaneamente a altas temperaturas, pressão esmagadora e radiação;

– Não fora desenvolvida ainda uma rede de vapor adequada a estas variações e

– Materiais raros como zircônio e hafnium teriam que ser obtidos e usinados através de técnicas que não existiam até então, dentre outros problemas.

Acharam o homem certo para solucionar estas equações, e o resto é história: veio o USS Nautilus, depois os submarinos com mísseis balísticos, e por fim os gigantescos porta aviões com dezenas de jatos a bordo e, na sua proa, a lenda Hyman Rickover. Não obstante seus sucessos, ele nunca deixou de ter problemas. Foi by-passado duas vezes na sua promoção a Contra Almirante. Na terceira vez, a Casa Branca, o Congresso e o Secretário da Marinha intervieram e ele recebeu suas estrelas.

É verdade que Rickover dirigiu o projeto nuclear da US Navy com mão de ferro ? Sim, sem dúvida . Todo voluntário a trabalhar nos projetos nucleares da Marinha era questionado pessoalmente por ele, e calcula-se que nos mais de 30 anos que ele passou na chefia destes projetos, tenha entrevistado mais de 14.000 candidatos (era workaholic, trabalhando de domingo a domingo).

Embora diversos oficiais tenham deixado de assumir o comando de um porta aviões ou submarino nuclear por se saírem mal nestas entrevistas, é fato que diversos dos aprovados alcançaram altos postos na Marinha Norte Americana. Dentre eles, destaca-se o jovem Tenente Jimmy Carter, que se tornaria o 39º presidente dos Estados Unidos. Ademais, este rigor criou um padrão de seleção na Marinha que iria se refletir em ZERO ACIDENTES com reatores nos próximos anos, ao contrário dos soviéticos, que os tiveram as dezenas, com incontáveis perdas humanas e materiais. Era tão frequente o vazamento de radiação nos submersíveis russos, que os mesmos contavam a seguinte piada:

“Como se faz para saber se um marujo serve em submarinos nucleares? É fácil, ele brilha no escuro!”

Os padrões de segurança e excelência técnica que Rickover desenvolveu granjearam à US Navy um enorme respeito junto a sociedade Norte Americana, sementes estas que frutificam até hoje na forma de bons orçamentos e confiabilidade institucional. Prova é que, por ocasião do acidente nuclear de Three Mile Island em 1979, Rickover foi chamado ao Congresso para sugerir como se poderia aplicar sua política de segurança de reatores nucleares aos empreendimentos civis. Nas palavras do Almirante:

“Não existe varinha de condão. Um programa de sucesso é uma integração de diversos fatores. Tentar selecionar um deles como elemento chave não funciona. Cada fator depende dos demais.”

Hiperativo, excêntrico, mordaz, mas um batalhador incansável. Esse era Hyman Rickover. Ele morreu em 1986, aos 85 anos, e está sepultado, ao lado dos presidentes a quem ele serviu, no Cemitério Nacional de Arlington, destinado aos grandes heróis dos Estados Unidos.

As lições que ele nos deixa

A vida de Hyman Rickover é um exemplo de trabalho duro, determinação, competência e, sobretudo, profundo amor e senso de responsabilidade para com o país que o acolheu. Uma prova inconteste da vitalidade e pluralidade da sociedade norte americana, capaz de oferecer a oportunidade de um imigrante ascender até o topo se a sua competência assim o permitir (lembremos que ele não é um exemplo isolado: Henry Kissinger, nascido na Alemanha, chegou a Secretário de Estado, o segundo cargo mais importante na república americana).

O projeto nuclear da US Navy se realizaria sem Rickover? A resposta é provavelmente sim. Mas talvez sem a mesma velocidade, magnitude e, sobretudo, sem a mesma segurança. O Almirante era obcecado pelo objetivo “zero acidente”, fazendo questão de assumir toda a operação “from the womb to the tomb”, isto é, ele supervisionava desde a construção de um submarino até a sua desativação décadas depois. E ele embarcava em todo submarino que construía por ocasião das provas de mar. Chamava para si a responsabilidade. Tinha comprometimento. Sua obra também nos ensina que, para empreender grandes projetos, não basta a disponibilidade de orçamentos, ou a mera capacitação profissional: faz-se necessário um profundo comprometimento, elevado espírito público e uma obstinação inabalável para finalizar um trabalho perfeito.

Também se verifica a importância da simbiose entre Forças Armadas e sociedade: Rickover conhecia bem a máquina governamental americana e os anseios do povo que o acolheu, e sabia “vender” suas idéias a estes segmentos. Fato é, o Congresso americano não dava o orçamento para a US Navy, dava-o ao projeto de Rickover. É preciso, faz-se imprescindível que busquemos pessoas assim em toda parte, com este ânimo, esta vontade de trabalhar, de realizar tudo o que o espírito humano é capaz. Necessitamos urgentemente de gente realizadora, independente de sua cor de pele, origem social, inclinação política ou crença espiritual. Há que se agregar, identificar estes talentos na Marinha, chamá-los a participar, fazê-los crescer, oferecer-lhes todas as chances e estimulá-los a dar o melhor de si para o país.

Também lança um alerta : precisamos melhorar educação oferecida aos nossos jovens, pois milhares de Rickovers em potencial se perdem todos os anos por falta de oportunidade de melhores estudos. Quantas boas pessoas com excelentes aptidões habitando rincões distantes deixam de servir ao país porque não lhes é oferecida a oportunidade de melhorarem suas vidas e somarem a sociedade?

Rickover dedicou os últimos anos de sua vida a batalhar pela melhora da educação dos EUA, porque sabia que para projetos de grande magnitude, não basta injetar um rio de dinheiro: há que se formar técnicos, operários e engenheiros qualificados para a tarefa. Se um homem aguerrido como Rickover tivesse sido substituído no cargo em algum momento por um oficial de mentalidade burocrática interessado apenas em fazer carreira, os EUA talvez tivessem, ao menos no fundo do mar, perdido a Guerra Fria para a URSS.

* pogrom foi um movimento violento que visava massacrar e perseguir grupos étnicos ou religiosos, especialmente aos judeus.

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