Suporte psicológico pós-acidente: um relato de experiência em esquadrão de aviões da Marinha do Brasil

“O programa Critical Incident Stress Management foi concebido por Jeffrey Mitchell e George Everly em 1989, com o propósito de reduzir a probabilidade de desenvolvimento de sequelas psicológicas relacionadas a incidentes críticos”

Por Capitão de Fragata (T) Marcelo de Mesquita Rodrigues Ferraz, Capitão de Corveta (T) Natalia Azevedo da SilVa Von Poser e Capitão Tentente (T) Tatiana Moreira da Silva

1 – Introdução

Seja pelo crescimento demográfico, pela ação destrutiva do homem ou mesmo pelo avanço da tecnologia, desastres afetam hoje um número cada vez maior de pessoas. Como se tais catástrofes não fossem suficientes, diferenças econômicas, religiosas e sociais fazem com que conflitos, massacres e atentados terroristas sejam constantemente deflagrados em várias partes do mundo. Tais situações catastróficas consistem em experiências traumáticas que geram efeitos potencialmente destrutivos sobre indivíduos, comunidades, bem como nações inteiras. Suas consequências para a psiquê humana são devastadoras, pois a ela são impostas demandas psicológicas que ultrapassam em muito sua capacidade de recuperação (FRANCO, 2015). Mitchell e Every (2001) se referem a estas situações, onde a homeostase psicológica é rompida, e onde os limites de enfrentamento do indivíduo são ultrapassados, como “incidentes críticos”.



Neste contexto, o acidente aeronáutico é considerado incidente crítico, por sua característica de ruptura com a normalidade, e por infligir grande sofrimento à população, que, ao identificar-se com as vítimas, coloca em questão a sua própria vulnerabilidade. Tal sentimento estende-se aos membros da comunidade aeronáutica, que se sentem responsáveis por terem projetado, manutenido, produzido, operado, ou controlado máquina responsável por tamanha dor. Para amplificar sua angústia, a mídia, o público, e mesmo os operadores de aeronaves, não resistem em, imediatamente, apontar culpados, sem que qualquer investigação tenha sido conduzida. (MITCHELL, 2006)

O acidente afeta não somente aqueles diretamente envolvidos (vítimas primárias), mas também parentes, amigos, a tripulação da unidade aérea, participantes das equipes de socorro/resgate, e mesmo aqueles que apenas tomaram ciência do ocorrido pelos mais diversos meios. Todos podem vir a experimentar pensamentos e sentimentos negativos relacionados, ou não, à atividade aérea.

Experiências traumáticas favorecem o surgimento de intensas reações cognitivas, emocionais, comportamentais e somáticas que são, para a maioria das pessoas, transitórias. Entretanto, existem aqueles que irão experimentar tais sintomas por um período mais longo, o que os torna suscetíveis a maiores prejuízos emocionais, bem como a danos à sua vida familiar, profissional e social.

Como forma de aliviar este sofrimento, pesquisas têm ressaltado a importância de se prover suporte psicológico às vítimas de incidentes críticos, com o objetivo de reforçar os mecanismos de enfrentamento e de adaptação dos envolvidos, e assim contribuir para o seu retorno a uma situação de equilíbrio. (MOLINARI, 2010)

Assim, o trabalho de Suporte Psicológico Pós-Acidente (SPPA), a ser oferecido a uma unidade aérea por ocasião de um acidente aeronáutico, teria como meta a redução das consequências psicológicas sobre a tripulação, aumentando sua capacidade de enfrentamento, favorecendo a sua reentrada na atividade aérea e prevenindo o estabelecimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

O propósito do presente artigo é descrever o uso de uma sistemática mundialmente consagrada, o CISM (Critical incident Stress Management), ou Gerenciamento de Estresse em Incidente Crítico, como ferramenta de Suporte
Psicológico Pós-Acidente (SPPA) por ocasião do acidente aeronáutico ocorrido em julho de 2016, envolvendo duas aeronaves do 1º Esquadrão de Aviões de Interceptação e Ataque da Marinha do Brasil (VF-1).

2 – Abordagem metodológica

O CISM é um programa de intervenção em crises compreensivo e integrado, que atua de forma colateral como mecanismo de aprimoramento da cultura de segurança. Nele são propostas diversas medidas para minimizar reações de estresse, restabelecer a habilidade para o trabalho e prevenir a ocorrência do TEPT.

O TEPT pode ser descrito como um distúrbio psiquiátrico no qual os indivíduos afetados revivem, repetidamente, a situação traumática por meio de imagens intrusivas, sonhos e pensamentos.

A exposição a situações semelhantes ao evento crítico causa intenso estresse, fazendo com que o indivíduo afetado desenvolva um comportamento de evitação a lugares, atividades ou pessoas que tragam de volta suas lembranças. Outros sintomas associados são excitabilidade, distúrbios do sono, hipervigilância e irritabilidade. A Associação Americana de Psiquiatria estima que entre 9% e 20% dos indivíduos expostos a uma situação traumática desenvolverão TEPT. Estudos também sugerem que 75% das pessoas expostas a um trauma necessitam de avaliação quanto à possibilidade de apresentarem outros distúrbios psíquicos, tais como: depressão, ansiedade, fobias, abuso de drogas e álcool. (FRANCO, 2005)

O programa CISM foi concebido por Jeffrey Mitchell e George Everly em 1989, com o propósito de reduzir a probabilidade de desenvolvimento de sequelas psicológicas relacionadas a incidentes críticos, por meio da informação e da elaboração verbal da situação traumática em grupos, facilitados por profissionais e membros da comunidade qualificados para tal. (MOLINARI, 2010)

O CISM não é uma prática isolada, mas um sistema que combina ferramentas de intervenção preventivas e reativas, e que deve estar plenamente consolidado na organização ou comunidade, para que possa ser utilizado frente a um
incidente crítico. Possui caráter educacional e de promoção da saúde, provendo aos participantes informação e formação, e gerando uma efetiva mudança cultural na organização. Desta forma, aumenta-se a resiliência daqueles que lidam com situações potencialmente críticas, por meio de informação, e de ferramentas para manejo e mitigação de situações potencialmente estressantes. (GERALDI, REZENDE, SILVA, 2010)

O programa dispõe de diversas ferramentas aplicáveis a momentos diferentes da situação de crise. No caso da intervenção realizada no VF-1, foram utilizadas duas destas técnicas:

– One-on-One: Abordagem individual que busca retratar as condições presentes na ocorrência e as emoções sentidas. As sessões individuais de aconselhamento podem ser oferecidas àqueles que sentirem necessidade durante toda a duração da crise e mesmo em momento posterior.

– Critical Incident Stress Debriefing (CISD): Discussão em grupo onde os fatos relacionados ao acidente são rememorados e os participantes expressam os sentimentos, pensamentos e sintomas que porventura experienciaram. Seu objetivo é mitigar sintomas agudos, verificar a necessidade de follow up (acompanhamento) e prover uma sensação de closure (fechamento psicológico) após a crise.

O processo do CISD consiste em uma discussão estruturada, organizada em seis fases: introdução, fato, pensamento, reações emocionais, informação e reentrada. O debriefing deve ser realizado em grupo homogêneo, tendo como facilitadores, um profissional de saúde mental capacitado e um ou dois voluntários treinados, todos chamados peers. (MITCHELL, EVERY, 2001)

Na introdução do debriefing, os peers se apresentam, explicam os objetivos da intervenção e levantam as expectativas do grupo em relação ao trabalho. Na fase seguinte, solicita-se aos participantes que apresentem uma narrativa dos fatos ocorridos. A terceira fase contempla a descrição das reações cognitivas experimentadas, e a quarta, a expressão das reações emocionais. Na sequência, são verbalizados os sintomas manifestados por cada participante, e é feita a transição para o nível cognitivo, quando são oferecidas informações sobre o TEPT e sobre o manejo do estresse. Encerrando a sessão, são esclarecidas possíveis dúvidas (MOLINARI, 2010). No caso da intervenção realizada no VF-1 optou-se por utilizar como peers apenas psicólogos, pois eram os únicos profissionais que possuíam a capacitação adequada.

3 – A Intervenção

O acidente aeronáutico ocorrido em 26 de julho de 2016, foi o primeiro acidente com vítimas a ocorrer no âmbito da Marinha do Brasil desde o ano de 2005. Foi também o primeiro acidente aeronáutico envolvendo aeronaves do VF-1, Unidade Aérea criada em 1998, única a operar aeronaves de asa fixa na MB. Foi o primeiro acidente fatal ocorrido após a implementação do curso de Psicologia de Aviação (C-ESP-PAVO), em 2006, quando psicólogos especializados em fator humano passaram a integrar as tripulações dos esquadrões de aeronaves da MB.

Tratou-se de uma colisão no ar entre duas aeronaves AF-1B, que faziam treinamento de voo de formação em simulação de ataque a alvos de superfície. Após o acidente, um dos pilotos conseguiu retornar com segurança ao aeródromo, apesar das graves avarias em sua aeronave, e o segundo desapareceu no mar, ensejando um intenso período de buscas.

Cientes da necessidade de prestar suporte psicológico ao esquadrão, de forma a prevenir enfermidades posteriores e facilitar o retorno dos tripulantes às suas atividades, havia, desde o primeiro momento em que se tomou ciência do ocorrido, um desejo, por parte dos psicólogos de aviação subordinados ao Comando da Força Aeronaval (ComForAerNav) e à Diretoria de Aeronáutica da Marinha (DAerM), de que um trabalho de Suporte Psicológico Pós-Acidente (SPPA) fosse realizado.

Ao mesmo tempo, o Comando do Esquadrão manifestou também a vontade de que o grupo de Psicólogos de Aviação da Marinha pudesse prestar assistência aos seus tripulantes. A realização do SPPA, entretanto, esbarrava em alguns obstáculos:

– No âmbito da Aviação Naval, nunca havia sido feito algo do gênero. Apesar da MB contar com três psicólogos de aviação qualificados na aplicação do programa CISM, a falta de experiência prática causava algum receio, tanto pelo risco de expor o Esquadrão a um trabalho que poderia não estar ainda bem estruturado, quanto de gerar na Instituição uma visão negativa sobre a ferramenta, julgada importante o suficiente para ser futuramente incorporada à Doutrina de Segurança de Aviação da Marinha.

– As buscas não haviam sido encerradas, e, portanto, não havia ainda um “fechamento” do acidente. Mitchell e Everly (2001) afirmam que o CISD deve ser colocado em prática dias após o ocorrido, porém, em contrapartida, sugerem que o trabalho não deve iniciar enquanto buscas ainda estejam acontecendo.

Sendo assim, deveria ser definido um quadro temporal que permitisse que a equipe estivesse preparada para aplicar a ferramenta e, ao mesmo tempo, que respeitasse o timing psicológico do esquadrão.

Com a autorização do ComForAerNav e da DAerM, foi reunido um Grupo de Trabalho composto por psicólogos da DAerM, do Serviço de Identificação da Marinha (SIM), e do Serviço de Seleção do Pessoal da Marinha (SSPM), capacitados pela International Critical Incident Stress Foundation para operacionalizar o SPPA, sendo que uma das psicólogas possuía experiência prévia na execução deste programa na Força Aérea Brasileira. Os psicólogos de aviação do Complexo Aeronaval também se disponibilizaram a atuar como peers, e participaram das reuniões de coordenação prévia com o grupo de trabalho, como forma de se familiarizar com a técnica.

O primeiro passo para uma intervenção de Suporte Psicológico é a informação. Logo, foi realizada uma explanação sobre o programa ao Comandante e à Psicóloga do Esquadrão que foi orientada a prover informações sobre o SPPA à tripulação e a organizar os participantes em grupos.

No intuito de prover a tripulação do Esquadrão de informações importantes, foi elaborado um folheto informativo a ser distribuído, que abordava os seguintes temas: o que é evento traumático; sinais e sintomas da reação de estresse em resposta a um evento traumático (físicos, cognitivos, interpessoais, emocionais, comportamentais e espirituais); e orientações individuais, para familiares e amigos sobre como facilitar os processos normais de recuperação. Tal folheto teve como objetivo informar os militares de sintomas que eles ou seus colegas poderiam vir a apresentar em decorrência do trauma do acidente, e orientá-los a, caso percebessem tais sintomas em si ou em seus colegas, procurarem a Psicóloga do Esquadrão.



Tiveram início, então, efetivamente, as sessões de CISD. Uma importante orientação foi a de que os grupos deveriam ser homogêneos e compostos apenas de voluntários, mesmo que fosse da opinião do Comando e da Psicóloga do Esquadrão que alguns militares, não voluntários, necessitassem da intervenção.

Por tratar-se de uma ferramenta inédita, havia certamente, uma desconfiança em relação aos seus propósitos, o que influiu na quantidade de voluntários presentes, especialmente no grupo de Praças, onde era esperada maior adesão.

Para lidar com este obstáculo, iniciou-se o procedimento com a explanação da técnica, frisando seus objetivos de prevenção do TEPT e de facilitação do retorno às atividades de forma segura. Tal rapport foi de fundamental importância, de forma a diferenciar a atuação dos psicólogos do SPPA de outras intervenções às quais o Esquadrão estava sendo submetido, como por exemplo, a investigação da Comissão de Investigação de Acidentes Aeronáuticos.

Algumas resistências em verbalizar pensamentos, sentimentos e sintomas foram observadas no decorrer dos debriefing, entretanto, todos mostraram-se interessados e, ao final, relataram que haviam se beneficiado das discussões. Houve casos onde foi detectada a necessidade de follow up para alguns militares, o que é comum no processo e faz parte também dos objetivos do CISD. A estes militares foi possibilitada a aplicação posterior de sessão one-on-one.

Também foi percebido que existia, no Esquadrão, por meio dos relatos de participantes, um sentimento difuso de que ainda haveria a possibilidade de retorno do piloto desaparecido. Diante disso, foi proposta, por ocasião do fechamento do trabalho com o Comandante, a realização de um ato simbólico, a ser definido, em que o militar fosse
homenageado e que pudesse incutir na tripulação a sensação de “closure”.

Ao final do processo, a equipe recebeu um feedback bastante positivo por parte da maioria dos participantes, que relataram tratar-se de ferramenta importante e julgaram que, se houvesse maior divulgação, a adesão da tripulação poderia ser maior.

4 – Considerações Finais

A experiência de SPPA no VF-1 foi a primeira realizada no âmbito da Aviação Naval. Tal prática já está estabelecida no Exército Brasileiro, na Força Aérea Brasileira, em empresas de aviação, bem como em organizações internacionais, como a Cruz Vermelha.

A atuação no VF-1, apesar de julgada pela equipe de psicólogos, Comando, e participantes, como positiva, certamente foi limitada perante à gravidade do ocorrido. Houve certa dificuldade em motivar parte da tripulação a participar dos debriefing, por desconhecimento da ferramenta, ou pelo “timing” psicológico não ser ainda o ideal.

Por outro lado, grupos de militares que também poderiam ser considerados vítimas, como as tripulações dos helicópteros das equipes de resgate, não foram incluídos. Além disso, do ponto de vista metodológico, o uso das ferramentas do CISM, sem que o programa esteja completamente implementado na organização, não é ideal.

No entanto, examinando para além desta experiência, a realização desta primeira intervenção em SPPA frente a um acidente aeronáutico foi um importante passo para a Aviação Naval. Sabe-se da dificuldade de se introduzirem novas metodologias em uma organização mas, talvez, por conta da forte motivação dos envolvidos em prover assistência ao Esquadrão, houve uma coordenação de esforços entre diferentes OM para que este trabalho fosse realizado. Também pôde ser constatada a necessidade de que, nesta atividade em que o risco é inerente, sejam planejados os passos a serem seguidos no sentido do retorno ao restabelecimento emocional dos tripulantes, nas situações onde o pior aconteceu. Destarte, cita-se a Recomendação de Segurança, emitida no Programa de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos da Marinha deste ano, de normatizar, em protocolo, a realização do Suporte Psicológico Pós-Acidente, propiciando que a MB esteja pronta a oferecer ao seu pessoal o acolhimento necessário frente a incidentes traumáticos.

Tal protocolo pode vir também a ser útil em outras atividades realizadas pela MB, onde exista risco de ocorrência de incidentes críticos, especialmente quando a organização se prepara para operar submarinos nucleares.

O acidente aeronáutico corresponde, para a população em geral, a uma ruptura da normalidade mas, para quem está próximo, ele é sentido como uma experiência dilacerante. Se consideramos o pessoal nosso maior patrimônio, é urgente a mobilização dos recursos necessários para minimizar seu sofrimento em caso de crise, e assim, promover o seu retorno às atividades da MB de forma saudável.

FONTE: Revista da Aviação Naval

FOTOS: Ilustrativas



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