Entenda como o Papa João Paulo II impediu uma guerra entre Chile e Argentina, há 40 anos

Em março de 1985, o Papa João Paulo II assinava o tratado definitivo, no Vaticano, ladeado pelos chanceleres do Chile, Jaime del Valle (esquerda) e da Argentina, Dante Caputo | Reuters

Por STÉFANO SALLES

Uma antiga disputa pela posse de Nueva, Picton e Lennox, três pequenas ilhas do Estreito de Beagle, além dos limites do Canal de Drake, por pouco não fizeram Argentina e Chile entrarem em guerra às vésperas do Natal de 1978. No dia 22, quando tropas argentinas já estavam prontas para invadir o país vizinho, chegou de Buenos Aires a ordem para suspender a ação. A trégua aconteceu em atenção a um pedido do então Papa João Paulo II, que assumira o cargo havia apenas dois meses. O Pontífice enviou um de seus homens de confiança, o cardeal italiano Antonio Samore, chefe dos arquivos e da Biblioteca do Vaticano, para auxiliar na mediação e, no dia 8 de janeiro, há 40 anos, os dois países assinaram o Acordo de Montevidéu. Era o primeiro passo para a resolução da controvérsia.



Aquela altura, os dois países eram governados por regimes ditatoriais e populistas: Augusto Pinochet presidia o Chile e Fernando Videla, a Argentina. A disputa pela soberania da área era antiga: em 1881, os dois países assinaram o acordo “Paz de los estrechos”, que deixava uma série de lacunas, agravadas pela reação argentina ao laudo da mediação britânica, anos antes da Guerra das Malvinas. O documento concluiu que a ilhas pertenciam ao Chile, mas que a Argentina tinha direito a uma fração do canal. O fato não foi bem recebido em Buenos Aires por duas razões: as ilhas eram percebidas como estratégicas para o acesso à Antártida. Além disto, acreditava-se que eram detentoras de grandes reservas de petróleo.

Mapa horizontal mostra a localização das três ilhas disputadas por Chile e Argentina | Reprodução

Cônsul-geral do Brasil em Milão, na Itália, o embaixador Eduardo dos Santos se dedicou ao tema no Curso de Altos Estudos do Itamaraty. Sua dissertação “Entre o Beagle e as Malvinas” foi publicada em 2016 pela Funag. Em entrevista ao Blog do Acervo, ele lembra que a recusa da Argentina em aceitar o laudo arbitral foi mal recebida pela comunidade internacional.

– Nos termos do tratado anterior, as ilhas realmente pertenciam ao Chile, mas havia muitas ambiguidades, não havia mapas e nem mesmo o traçado do canal. A controvérsia durou boa parte do século XX. Em vez de decidir, a coroa britânica convocou, em concordância com as partes, um painel de cinco juízes da corte internacional de justiça, de Haia, que demorou quase seis anos para decidir. Foi uma reação muito negativa, só evitada pela interferência do Vaticano. Os argentinos estavam prontos para bombardear Santiago e os chilenos já tinham levantado tropas. Foi uma crise pré-bélica – lembra.

No dia 23 de dezembro de 1978, O GLOBO trazia a matéria “Papa envia emissário a Beagle para obter paz”. O texto dizia: “Na audiência que concedeu ontem, no Colégio de Cardeais, o Papa comunicou que tanto o governo Jorge Videla quanto o de Augusto Pinochet haviam concordado em receber o ‘emissário da paz’. Lembrou que os dois governos haviam solicitado há algum tempo a mediação da Santa Sé, mas ‘esse propósito comum não pôde concretizar-se por logo terem surgido dificuldades’.

Ao longo do tempo, as principais justificativas geopolíticas para o confronto perderam força. O Tratado da Antártida, atualmente, assinado por 24 países, suspendeu as pretensões de soberania sobre territórios do continente. E não há notícias sobre a existência de jazidas relevantes de petróleo ou gás natural no Estreito de Beagle, diferentemente do que acontece nas Ilhas Malvinas, onde o Reino Unido já iniciou perfurações.

– Naquela região do Estreito de Beagle há uma cidade argentina: Ushuaia. Por muito tempo o Chile defendia a tese que a Argentina tinha direito apenas à fronteira seca, as águas não seriam dela. E os argentinos defendiam ter direito à navegabilidade. Acabaram vencendo nisto: o laudo mostrou que o canal pertence, metade à Argentina, metade ao Chile. A fronteira é a linha média – explica dos Santos.

A edição do GLOBO de nove de janeiro de 1979 registrava o tratado e o fim das tensões, com a matéria “Crise de Beagle: Argentina e Chile chegam a acordo”. O texto dizia: “Os ministros do Exterior da Argentina, Carlos Pastor, e do Chile, Hernán Cubillos, reuniram-se ontem na capital uruguaia com o emissário do Vaticano, cardeal Antonio Samore, para assinar um documento em que seus países se comprometem a não recorrer ‘à força’ em suas relações e a promover um retorno gradual à situação militar existente no início de 1977, abstendo-se de adotar medidas que possam alterar a harmonia em qualquer setor. Simultaneamente, os dois chanceleres solicitaram formalmente a mediação do Papa João Paulo II para seus litígios de limites na região do Canal de Beagle”.

Antes do pacto, também foram realizadas missões por parte da ONU e dos EUA para evitar o conflito. O Brasil permaneceu neutro e só se posicionou com notas, nas quais fez apelos por uma solução pacífica. Após o Acordo de Montevidéu, os dois países ainda demoraram mais cinco anos para chegarem a um tratado definitivo.

Eduardo dos Santos nega que a disputa pelo Canal de Beagle tenha sido o principal combustível da rivalidade estabelecida entre chilenos e argentinos:

– As relações entre os países sul-americanos sempre se deram muito à base da desconfiança. Essa rivalidade existe desde o século XIX, mas melhorou muito. Com o retorno da democracia, essas questões foram sendo resolvidas. O clima de rivalidade eu diria que está superado, e o Mercosul ajudou muito nisto, com as iniciativas de integração. O que há hoje é um vestígio dela, uma competição nos âmbitos cultural e comercial, o que é até sadio – conclui o embaixador.

FONTE: O Globo



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